A minha tia Ibéria tem noventa e seis anos! – João Nogueira

Chegaram as rugas, hoje, ao meio-dia e vinte.

Ontem não estavam cá. Hoje, ao acordar, vi que se tinham instalado a noroeste dos meus olhos. Meia dúzia de semi-rectas bem carregadas. Vinham cheias de móveis do IKEA. Senhorio que sou fui ver a lei, mas não há nenhuma lei de despejo. Ainda por cima não pagam renda.
As rugas são parasitas. Instalam-se, espreguiçam-se no sofá e acabou. Não fazem nada e recebem rendimento mínimo. “Padamonas”, andam de chinelo de quarto na rua – sujeitas a calcar fezes de Rotweiller- e vão comprar pão de robe, cheio de nódoas de cevada.

Ontem não tinha rugas.

A semana passada tinha catorze anos, mil e seiscentos quilos de testosterona e um buço farfalhudo a crescer. A semana passada olhava para baixo do umbigo, feliz por ter pelos púbicos no sítio onde se tem pelos púbicos.

Há quinze dias tinha dez anos e, armado em Kostadinov, na praia da Aguda, chutei uma bola tão bem chutada que bateu na cabeça de uma velhinha. A bolada escangalhou-lhe a permanente e fê-la desmaiar. Ao meu lado, um colega, para me acalmar, disse: “Calma, João! Se calhar não a mataste!”

O mês passado andava na escola primária, a levar a torto e a direito porque a senhora professora apreciava arrear na malta. O que respeito. Aliás, mereci cada bordoada, na medida em que, às vezes, chegava transpirado do recreio, com um Oceano Atlântico nas axilas, e noutras circunstâncias não estava devidamente penteado.

Hoje tenho rugas. Como a minha tia Ibéria.

Tem noventa e seis anos!

A tia Ibéria é tia-bisavó. Nasceu no ano das aparições de Fátima. Ou não!

Veste preto, tem o cabelo branco. Às vezes usa véu. Reza o terço de olhos fechados, mexe os lábios, sussurra, mas nunca percebo se está a dizer o Pai Nosso ou a tabuada dos sete. A tia Ibéria esconde o lenço na manga da camisola,  funga sempre com muita força e espirra muito alto. Tem rugas. Centenas. Em todo o lado. De norte a sul daquele corpo pequenino não há um lugar, um sinal, um polegar encorrilhado que não conte a sua história. A coluna está dobrada. É corcunda. Mas só de corpo!

É provável que morra um dia destes. Ou para o ano. Ou no outro. Não há volta a dar!

É velha. Como Atenas. Como Roma. Tem capítulos que nunca mais acabam. Nunca me canso de folhear a Tia Ibéria. É sempre a primeira vez.

Cancelaram-lhe o caminhar. Vê mal. Só pode comer sopa branca. Mas cresce-lhe um rio nos olhos de cada vez que vê a Ana. Um rio, não. Um rio pode estar sujo. Cresce-lhe uma lagoa azul. Limpa. Com cheiro a terra molhada e com o barulho a canalha pequenina, de carrapito na cabeça e calção pelo joelho.

A Ana, além de minha irmã, é a resposta. A reposta à pergunta da tia Ibéria que, dia sim dia sim, diz que não sabe o que é que ainda anda cá a fazer. Mas ela sabe. Se não soubesse, aqueles olhos amarrotados não se riam. Ela sabe.

Preocupa-se comigo. Aliás, preocupa-se mais com o meu estado civil.

Há uns domingos atrás, entre garfadas de cozido à portuguesa e orelheira, disse-me o seguinte:

-João, o rapaz é um mocinho mais novo do que tu, já é casado, já tem filhos – aliás, já vai para o segundo – 
– Ok, tia.
– É. Já é casado. E já tem filhos. Namorou para uma mocinha que me fazia as unhas e já casou. E já tem filhos.
– Ok, tia.
– É. Fez-se homem. Já vai para o segundo.
– Ok, tia.
– É. Fez-se homem.
– Ó tia, esse gajo não é aquele que esteve preso em Custóias por dar uma cotovelada ao bisavô?
– É. Mas é casado. E tem filhos. Já vai para o segundo.

Tenho 33. Gostava de estar tão lúcido como a minha tia quando tiver…34!

Jura que, na década de 30, o Salazar lhe olhou para os glúteos, então rijos. Diz que lhe esticou o dedo do meio. Mas também diz que quem mais jura mais mente.

A tia Ibéria dizia-me, em pequenino, que eu não podia dizer asneiras. A seguir dizia-me que quem estava a cantar a Nini dos meus quinze anos era o Paulo de Caralho. Depois pedia-me para repetir e ria-se. Como uma perdida!

A tia Ibéria não tem a obsessão da coerência. Ela não pensa nisso, sequer. Nenhum de nós o é completamente. Há os que são mais e há os que são menos.

A minha tia não concluiu a instrução primária porque teve de ir enrolar cigarros. Foi trabalhar para a Tabaqueira, no Porto. Ainda hoje fala de filtros, de mortalhas e de tabaco, com o mesmo entusiasmo de um moço que conheço e que arruma carros ali na Corujeira.

Levantava-se às cinco da manhã, fazia dez quilómetros a pé, à chuva e ao vento, e chegava às oito. Saía às cinco da tarde, fazia dez quilómetros a pé, à chuva e ao vento, e chegava às oito. Fez esta peregrinação todos os dias. Durante quarenta anos!

A minha tia, de noventa e seis anos, também se queixa que gasta muito dinheiro. Aliás, está sempre a dizer que, a gastar dinheiro como gasta, daqui a dez anos vai querer comprar uma pecinha de roupa e não vai ter. E isso é coisa que a aflige.

É provável que morra um dia destes. Ou para o ano. Ou no outro. Não há volta a dar.

Quando esse dia chegar, vai perceber o que é que andava aqui a fazer. É que vai nascer um rio nos olhos da Ana.

E nos meus.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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