Ainda o levaram para o hospital…

Só por si, ler comentários em jornais é a receita para eu ficar irritado ao longo do dia e, por vezes, nos dias seguintes como é o caso. Rapidamente a cabeça arrefece e a democracia volta a invadir o meu espírito, porém, há um curto intervalo de tempo em que me passam pela cabeça pensamentos antidemocráticos como os de criar crime de opinião e eventualmente condenar algumas pessoas ao desterro para o deserto.

Por algum motivo, há uma grande concentração dum tipo particular de pessoa que gosto de designar de “descontente de Wi-Fi porque é um indivíduo que só possui ativismo político a partir das 21h quando se senta à frente do computador e vai comentar jornais, seja no seu site ou na sua página do facebook. É um indivíduo caraterizado pela sua permanente crítica, geralmente exagerada ou infundada, direcionada aos serviços públicos portugueses, ao país, ao povo português, à Europa, ou a qualquer coisa porque no fundo criticam tudo o que exista. Mentira, também já são conhecidos casos onde são tecidas críticas a frutos da sua imaginação.

Na consequência do triplo homicídio em Quinta do Conde, ao explorar ler as notícias nos jornais que subscrevo no Facebook, deparei-me com uma constante nos comentários.

Desta vez, notei que em todos os jornais o grosso dos comentários apelavam ao linchamento do velhote de 77 anos que vai passar o resto da vida da cadeia se lhe for aplicada a pena máxima de 25 anos (e espero que seja, em luz das circunstâncias pois falamos duma eventual condenação por triplo homicídio qualificado por vários motivos).
“Ainda o levaram para o hospital…”
“Disparate é a impunidade que há neste país”
“Direitos humanos para humanos direitos. Devia sim ser imediatamente abatido, como se de um animal selvagem se tratasse, que aliás é o que esse ser execrável é”
“Investigação? Atirador no local depois de abater dois elementos policiais TEM de ser imediatamente ABATIDO!” (sic)

Custa-me encontrar uma forma de comentar esta situação porque não consigo facilmente ser pedagógico e lógico para contestar algo que por natureza é antipedagógico e ilógico.

Vivemos, felizmente, num país com liberdade de expressão e iluminado pelos conceitos das demais liberdades, direitos e garantias, ou quantas vezes se vêm invocados estes direitos nos mesmos comentários que referi? O que é amiúde esquecer é que esses direitos vêm emparelhados com a obrigação de os usar com bom senso e responsabilidade (para não falar em crime de instigação pública a um crime) e não permitir que, mesmo de cabeça quente e com justa revolta se falem palavras e se cometam atos que posteriormente se arrependam, porque de atos irrefletidos já resultaram três mortes.

Pior que proferir estas palavras indisciplinadas é, passados vários dias, continuar a ver que as mentalidades não mudaram em nada, que alguns desses indivíduos realmente preconizam essa sua noção de justiça. Que defenderiam a morte como forma de justiça, que acreditam que vida vale por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão e pé por pé. Não me cabe como é que no século 21 ainda há espaço para que princípios bíblicos continuem a incitar ódio e pensamentos de morte.

Quantos destes indivíduos seriam mesmo capazes de encostar uma arma à nuca do homem, agora detido, e disparar? Como podem achar que há impunidade quando ele está agora preso e, mesmo em fim de vida, a lei aspira que ele passe os seus últimos dias numa tentativa de reabilitação que o impedirá de constituir uma ameaça para si mesmo, para a sociedade e seu património?

Justiça não é punir, não vejo essa finalidade na lei penal. Punir não traz os polícias de volta nem o seu filho, não se volta atrás no tempo, ele não deixará de ser um criminoso por ser executado porque vai morrer como tal. Já se aspirarmos ao seu isolamento, pelos motivos que falei, se o obrigarmos a compreender o erro e o mal nos seus atos, se moldarmos as suas crenças e os seus valores, se transmitirmos a todos os que vêm o destino de quem prevaricar da mesma forma que ele, aí sim estará vingada a memória dos que perderam a vida naquele dia. Teremos de novo, ou não dada a sua idade e a dimensão da pena que o espera, um cidadão digno desse nome, reinserido no nosso meio, com a certeza em mente que não reincidirá.

Nem sempre isto funciona, citem à vontade exemplos de que não funciona, mas temos uma taxa de reabilitação bastante elevada e temos o motivo de orgulho de que não vivemos na alçada de um Estado que mata mas de um Estado que educa à luz dos direitos humanos e do bom senso.
Matar é uma saída fácil para quem não tem coragem de lidar com os vivos.

Melhorar o país não é com queixas alatórias, ridículas e tristes nas redes sociais e no Facebook, é com ações, com atitudes! É denunciar à polícia quando se é vítima de um assalto em vez de dizer que “eles não fazem nada”, se não denunciarem não fazem mesmo. É denunciar quando alguém na rua tentar vender droga. É recusar quando perguntam se quer a obra lá em casa feita sem IVA. É pedir faturas. É fugir às pequenas corrupções. É respeitar o sinal vermelho no trânsito e deixar passar o peão na passadeira em vez de levantar a mãozinha a pedir desculpa quando tinha oportunidade de parar atempadamente. É comprar o jornal para ler mais do que a secção desportiva. É pagar o bilhete do metro. É não cuspir na rua. É não sair de casa quando se está doente com algo contagioso. É evitar ir às urgências por motivos ridículos. É evitar passar a vida bêbado. É deixar de fumar. É revoltar-se quando vê que não se está a lidar devidamente com a questão da ébola em vez de ficar indignado por abaterem um cão que matou um bebé. É prestar atenção a notícias relevantes em vez das irrelevantes que estão na moda. É passear o cão com trela e impedir que suje a calçada. É não deitar lixo pela janela do carro. Entre outros comportamentos que as pessoas deviam supostamente adquirir na idade pré-escolar.

Insultar o Estado é muito fácil, lembrar que a população é parte integrante do Estado é que já não é tanto.

Antes que me acusem de afiliações políticas, poupem-se ao ridículo: não tenho e não apoio qualquer partido político neste momento e muito menos apoio o governo.

Crónica enviada pelo leitor Francisco Pereira