Para a Ana… – João Nogueira

Isto é para a Ana. Só.

Para a Ana, que é morena. Que é alta. Que tem pernas que nunca mais acabam. Para a Ana do cabelo grande. Muito escuro. Que põe pó de arroz na cara e que tem um truque de magia qualquer que faz com que os olhos fiquem ainda maiores.

A Ana, uma espécie de Deus. Sabe tudo. Não falha. Até aborrece. A Ana, uma espécie de Deusa. Linda! Sorriso fresquinho.

A Ana é pequenina. Está quase nos trinta. Mas é pequenina.

Usa saltos altos. Não é para ficar em bicos de pés. Não precisa. Ninguém lhe chega aos calcanhares. É só porque é vaidosa. A Ana é alta. É esguia. Mas tem curvas. Cheira bem. A Ana é pequenina.

Ana, nunca ninguém nos morreu. Pelo menos a sério. Hoje sim. Fica triste. O tempo que quiseres. Hoje não vais ser a capitã do teu coração. Hoje não. Hoje é ele que te vai levar a passear. Vais ser o guiador só. E ele vai andar contigo para a esquerda e para a direita. E para trás. Sobretudo para trás. O sítio das memórias.

Ninguém nasce para fazer os outros felizes. Isso é egoísmo. Dos outros. Nasce-se para ter uma história. Todos a temos. Algumas são fracas. Outros assim-assim. Depois há a tua. Que é a que ganha óscares.

Na história da tia, foste o depois de Cristo. Houve vida antes de ti. Foi o antes de Cristo. O antes de Ti.

Ana, que és pequenina, és um gigante bom. Cuidas dos teus. És leal. Aliás, és-te leal. O que é ainda maior. Uma coisa muito grande.

A tia morreu. Desapareceu. Não lhe vais voltar a fazer chá preto. Não vais voltar a molhar a bolacha na cevada dela.  Não  lhe vais voltar a ajeitar o xaile, que era tão quentinho. Não lhe vais voltar a calçar os carapins, antes de se deitar. Não lhe vais pôr a manta nas pernas, que eram tão magrinhas. Eram. Eram, Ana!

A vida também é a morte. Aquela coisa preta de que nunca queremos falar. De que todos temos medo. Todos.

Não te sei dizer se a vais voltar a ver um dia. Desculpa. Quem me dera que sim. Mas eu não tenho Deus. Quem me dera ter, caramba. Assim dizia-te coisas mais bonitas, porque tu és pequenina. Assim, não.

Ana, a memória ninguém ta rouba. É tua.  Fecha os olhos. Ela está aí. No escuro. É quando fechas os olhos que vês melhor. Que a vês melhor.

Hoje, quando te lembras dela, morres. Amanhã também. E para o mês que vem. E para o outro. Sofres porque amas. E quando se ama muito, sofre-se muito. É sempre assim. E assim é que está bem. A dor dignifica o amor. A dor é para ser doída. É para moer. Para arder. A dor é quando se funga muito. Quando se ejaculam lágrimas. Ejaculam-se lágrimas porque se ejaculou vida. É respeito.

A vida dá-te. A vida tira-te. A vida ilumina-te. A vida anoitece-te. É assim. Mas antes assim.

Ana, eras cinquenta centímetros, pouco cabelo e muito ranho e ela já te embalava devagarinho. Tinha 67 anos, quando nasceste. Já era velha. Foi sempre velha. Foi velha desde nova. Preto de cima a baixo, véu, terço, lenço debaixo da manga, canadiana para não cair,  cabelo branco. Muito branco. Rugas até nos sítios onde não se têm rugas. Depois nasceste. E ela também. Morreu hoje, com noventa e seis anos. Muito mais nova do que no minuto anterior a teres nascido. Há quase trinta.

É fácil ver quando alguém gosta de nós. É fácil ver quando somos o grande amor da vida de alguém. Está na cara. Nos olhos. No nariz. Na boca. Nas pernas, que tremem. Que dançam. Nas setecentas mil pulsações por minuto quando choravas .Nas noites em que te abanava só para ter a certeza que estavas a respirar. Nas noites em que te dizia para não teres medo dos relâmpagos. Era Jesus a ralhar. Mas com os outros. Contigo não. Contigo nunca. Porque se fosse contigo, ela vestia o robe, abria a porta, abria o guarda-chuva e dizia a Jesus para ele ir ralhar com o sobrinho-bisneto dele. E a seguir era logo Primavera.

Tu não nasceste só para a fazer feliz. Era o que faltava! Tu hás-de correr o mundo. Hás-de ir ao Brasil, porque és praia. Ao Rio. Vais ser a garota de Ipanema. A Ana de Copacabana. Até rima!  Vais subir a favela, também. Só para veres os moleques a descerem, a correr, quando te virem. Não és só muito bonita. O que não falta são mulheres bonitas.  Tu tens aquilo que não se vê. Aquela coisa simples. Que é tão grande que nunca mais acaba.

Hás-de voar. Afinal, tens asas. Que também fazem os outros voar. Que foi o que fizeste com a tia. Nunca lhe tiraste o preto do corpo. Mas fizeste-lhe um arco-íris naquele coração velhinho. Que só parou de bater porque já tinha batido o suficiente para ver a Mulher em que te tornaste. Agora foi descansar, Ana. Deixa-a ir.

Ana, que és a minha mana, hoje cresceu-te um rio nos olhos. Chora-o todo. Tens tempo. Um rio é muito grande. Demora muito tempo a ser chorado. Diz-lhe adeus aos bocadinhos. Um bocadinho hoje. Outro bocadinho amanhã. Outro para o mês que vem.

Dorme bem, Tia.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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