“Armando Bernardo Cutileiro” – Um Natal mais pobre

Uma carta recebida em véspera de Natal, trouxe à minha mãe sobressalto. Vinha fechada num sobrescrito retangular, igual ao do envio dos cartões de Boas Festas que regozijam os crentes com o espírito da Quadra, e, ao longo de três páginas, redigida com letra tremida, que eu hoje comparo à imagem desfocada dum objeto observado através de uma lente graduada.

Apesar de ainda nova padecer de vista cansada, à minha mãe não custou identificar a caligrafia do meu pai. Leu-a de modo salteado, abreviando a conclusão dos parágrafos, temendo nas entrelinhas perceber que alguma coisa não ia bem com ele. Reconheceu os A’s enviesados, o excesso de pintas nos I’s, ignorou a ausência de critério razoável na forma como se explicava eliminando os acentos ou começando uma frase com letra minúscula, o duplo sentido de juntar a vírgula ao ponto e vírgula, e, na falta de hífens, um modelo de escrita ainda mais simplificado do que se pretendeu alcançar aprovando o Acordo Ortográfico agora vigente.

Terminou a leitura rapidamente, atenta à rasteira das vírgulas, suscetíveis de atribuir entendimento diferente às frases, e só percebeu a alusão ao excesso de trabalho, quando alcançou que, por conta da urgência de acabá-lo, ele pedia desculpa por não poder ir a casa. Sentiu um misto de dor e desencanto, pela expetativa gorada dum encontro há muito esperado e pôs-se a chorar. Repetiu-se uma cena de outros Natais. A minha mãe teve de conformar-se e conformar-nos com o argumento de que, nem sempre no Natal os pais podem estar presentes, mas para eles continuaremos a ser o menino Jesús.

Comemos batatas e castanhas assadas na noite da Consoada, que a minha mãe comprou fora de época a uma senhora que as não podia comer por causa dos gases. Achei-as ao sabor da água salobra, moles, murchas como a sola gasta de um sapato prestes a completar o dobro da minha idade. Comemo-las mesmo assim. Comi-as satisfeito, como se saciasse a fome comendo uma perna de frango suculenta, sabendo que no dia seguinte me dariam a comer a asa.  E por fim, a minha mãe abriu uma garrafa de vinho abafado, entornando o último gole num copo, que tresandava à sede de enchê-lo com vinho que restasse duma refeição decente.

Connosco à mesa, contou depois a história dum tio emigrado na América, que jamais percebi se era dela ou de alguém que estimasse, por sempre repetir que lamentava pudesse matar-se a trabalhar. Terminou como se nos preparasse para a Missa do Galo, narrando comoventes passagens da vida de Cristo, que evocavam o caráter eterno dos atos bondosos. Relatou pormenorizadamente o milagre da multiplicação dos pães, o sermão da montanha, e por fim li-lhe claramente no rosto, a angústia de, não podendo alterar o curso dos acontecimentos, nada poder fazer para dar-lhe um final de vida condizente com a alegria demonstrada pelo povo aquando do seu nascimento. Acho que, de bom grado, ela se deixaria prender em eu lugar, e ser levada à presença dos sumo-sacerdotes que haveriam de condená-la a carregar uma pesada cruz em direção ao calvário, em nome do delito da coragem de sacrificar-se a si própria para salvar um inocente.

Um inocente como eu, a quem não basta dizer que sim, por dizer. Que dali a um ano teríamos um Natal melhor, mesmo sem a perspetiva de, com breve escala na Terra Nova, um tio rico vindo da América nos trazer de presente um bacalhau, nobre representante duma espécie, em nossa casa, há muito em vias de extinção.

CONTINUA