O meu avô, as férias, a Elsa e o Pinto da Costa – João Nogueira

Férias. Gosto delas. Muito.

As férias não servem para descansar. Lamento. Se quiser descansar vou levantar uns halteres ou vou a pé a Fátima. As férias são para sonhar. Só! E isso é tanto.

Levo uma mala, sempre. Não com roupa. Não com pasta de dentes. Levo uma mala vazia. Lá dentro, só o forro. Vai sempre levezinha. Quando volto, vem cheia. Não com roupa. Não com galos de Barcelos. Não com retratos dos três pastorinhos. Na mala, o mundo. Aquele que o meu avô me mostrava, enquanto rodava o globo. Morreu cedo. Eu ainda lia aos soluços. Mas o meu avô foi o primeiro a mostrar-me o mundo. Sem nunca sairmos daquele quarto, levou-me à Argentina. A seguir, fomos à União Soviética. Depois levou-me a Moçambique.

O meu avô Custódio, que nunca soube conduzir, foi o primeiro a dar-me boleia. Foi o meu primeiro InterRail. O meu primeiro cruzeiro pelas ilhas gregas. O meu avô era o meu avião. Pegava-me às cavalitas, corria, corria, corria e quando a pista de aviação estava a acabar, abria os bracitos e lá íamos nós por ali acima. Eu e o meu avô!

O meu avô morreu quando eu tinha cinco anos. Sem saber, ensinou-me a jogar a vida. Disse-me as regras. Mas só com os olhos! Que é onde estão as cordas vocais!

O meu avô Custódio nunca soube conduzir. Acho que o meu padrinho ainda o tentou ensinar. Mas desistiu. Parece que, depois de meter a primeira, metia logo a quinta. Aliás, às vezes até arrancava em quinta. A meio da viagem quis subir a Serra da Agrela em ponto morto e aquilo, não sei porquê, não correu muito bem. Não percebo por que é que o meu padrinho desistiu.

O meu avô não tinha carro e isso fazia-me confusão. Quando lhe perguntava pelo carro, dizia-me que ele se estava a vestir. Eu acreditava. Sempre! O carro que o meu avô nunca teve, e que se estava a vestir, ensinou-me a sonhar. Quando fecho os olhos, vejo-o num Fiat 127 amarelo, a sorrir e a dizer-me adeus.

Avô! Caramba, há quantos anos não chamava por ti. Sabe bem escrever “avô”. Já nem me lembrava como era. Os olhos ficam com um oceano lá dentro. Mas é um oceano pacífico. Os olhos dizem tudo, não é? Despem-nos.

Cheguei de Barcelona há dias. Fui lá sonhar. Como o meu avô me ensinou. Fico sempre cidadão das cidades aonde vou. Hoje, por exemplo, sou um catalão. Posso ser o que quiser. Catalão, palestino, adventista do sétimo dia, preto. Sou o que quiser ser. E se amanhã já não me apetecer ser, deixo de o ser.

Fui com a Elsa. Partilha comigo isto dos sonhos. Também partilha comigo a cama, embora ocupe o espaço dela e o meu. Partilhamos, sobretudo, o silêncio! Que é tão difícil de partilhar. Atenção que isto não é só coisas boas. Às vezes também partilhamos discussões. Eu sou do Porto e ela do Benfica. Consegue tirar-me do sério quando diz que o Pinto da Costa não é a pessoa mais séria do mundo!

Gosto muito dela. É extremamente organizada. Antes de sairmos de casa, para irmos para Barcelona, disse-lhe :

– Amor, a mala não vai passar, na medida em que é demasiado grande.

Ela disse para eu não agoirar e para deixar de ser tão formal na linguagem.

A mala não passou e tivemos de comprar uma mala nova no aeroporto. Foi barata. Custou oitenta e sete euros. A seguir, no meio do aeroporto, tirámos tudo de uma mala para meter na outra. Ele era sutiãs pelo chão, líquido das lentes nos bancos, as minhas revistas da Playboy em cima de uma caixa de multibanco. Mas até aqui tudo bem, a manhã estava a ser óptima. A seguir, disse-lhe:

– Faz lá o obséquio de não levares esses líquidos todos porque não te vão deixar passar com isso.

Ela, tranquilíssima, ainda que aos berros, disse para eu parar de agoirar e para parar de ser tão formal na linguagem.

A mala voltou a não passar!

O dia estava a ser perfeito. E continuou a sê-lo quando chegámos a Barcelona.

Fomos buscar as malas. Enquanto não chegavam, dávamos um ou outro beijinho. As malas demoravam a chegar. Entretanto, íamos dando mais um ou outro beijinho. As malas não chegavam! Das cerca de cem pessoas que esperavam pela bagagem, restávamos doze, órfãos de malas. Nós, meia dúzia de alemães, um casal de velhinhos e mais três pessoas com um ar que desafiava soco. Entretanto, deixaram de passar malas. Os alemães desataram a dizer scheisse, o casal de velhinhos controlava os esfíncteres para que a coisa não desse para o torto, as três pessoas com um ar que desafiava soco continuavam com ar de quem desafia soco, a Elsa rezava e eu também. Aliás, ela rezava e eu mexia os lábios.

Minutos depois, voltaram a aparecer malas. Alívio! Os alemães abriam o sorriso, o casal de velhinhos abraçava-se, ainda que notoriamente a controlar os esfíncteres, e as pessoas com um ar que desafiava soco continuavam com um ar que desafiava soco. As pessoas iam pegando nas malas e iam à vida delas. Só faltava a da Elsa, que nunca mais chegava. Desesperada, começou a chorar e a dizer que nem cuecas tinha. Disse-lhe que não era grave, porque só íamos ficar uma semana. Mais do que uma semana com as mesmas cuecas é que já parece mal!

A seguir, a felicidade!

Vejo, ao longe, a mala cor-de-rosa. Tinha acabado de encontrar o tesouro. Disse-lhe para fechar os olhos, que nem ia acreditar. Ela, com um tremor de terra no queixo, a chorar e com os olhos fechados, perguntava-me se eu tinha a certeza do que estava a dizer. Disse-lhe que sim, que era tão certo como dois mais dois serem quatro. Entretanto, abre os olhos. A seguir fecha-os logo. Aos berros, a bater com o pé no chão, desesperada, disse:

– João, estou farta do teu daltonismo. Essa mala é cinza-rato! Não é a minha!

A mala apareceu no dia seguinte. Barcelona continua linda e as férias foram fantásticas.

Fomos a Montjuic, às Ramblas, ao Park Güell e tirámos fotografias à frente da Sagrada Família. Aliás, a Sagrada Família somos nós, não é a igreja.

Tibidabo fica para a próxima. Imagino que deva ser lindo. Mas não tão bonito como o meu avô, a sorrir e a dizer adeus no Fiat 127 amarelo.

O carro que se estava a vestir.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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