Como Escrever uma Carta Aberta ao Primeiro-Ministro – Amílcar Monteiro

Reparei esta semana que, estranhamente, ainda existem pelo menos dois ou três portugueses que nunca escreveram uma carta aberta ao primeiro-ministro. Depois de muito pensar sobre a razão desta falha inadmissível, conclui que a única explicação possível para tal se prende com o facto destas pessoas não saberem como escrever uma carta deste tipo. Assim sendo, na tentativa de ajudar estes cidadãos, passo a descrever os doze passos necessários para o fazer:

Passo 1

Iniciar a carta com “Exmo.” ou “Caro Sr. Primeiro-Ministro”. Esta terminologia é essencial pois mostra logo à partida que o autor sabe escrever cartas e que, como tal, não é uma pessoa qualquer, mas sim um cidadão diferenciado.

Passo 2

Expôr um pouco da vida pessoal. Nesta parte, deve-se incluir o nome, a idade e uma breve sinopse do percurso profissional. Isto serve para passar a ideia de que o autor sempre foi um cidadão exemplar, que trabalha arduamente e com qualidade e que paga os seus impostos. Aqui pode optar entre afirmar que está desempregado ou empregado mas em terríveis condições. É indiferente, desde que fique bem vincada a ideia de que está “a representar uma geração”.

Passo 3

Insultar, de forma gratuita, o primeiro-ministro. Neste ponto, pode adoptar uma abordagem subtil ou então recorrer a palavrões. Pessoalmente, eu recomendaria a segunda opção, pois todos sabemos que nada demonstra verdadeira revolta como um palavrão.

Passo 4

Começar por referir que o primeiro-ministro não se preocupa com os cidadãos e que está a destruir o país, passando de seguida para uma descrição pejorativa de todos os governantes (de modo geral). Entre outros termos a utilizar, recomendam-se “corruptos”, “incompetentes”, “ignorantes”, “mentirosos” e/ou “ladrões”. Lembre-se também de sublinhar algumas ideias, tais como de que isto está tudo na mão dos grandes empresários e gestores ou  que existem “tachos”, “cunhas” e “boys”, entre outras constatações do óbvio repetidas até à exaustão.

Passo 5

Demonstrar indignação pelas medidas apresentadas pelo governo em funções, referindo obrigatoriamente impostos e taxas. De salientar que esta indignação é óbvia e partilhada por todas as pessoas, pelo que deve tentar descrevê-la como se fosse a única pessoa a ver com clareza o que se passa no país.

Passo 6

Fazer questão de não apresentar qualquer alternativa às políticas vigentes. Neste passo, convém referir algumas percentagens (se possível com casas decimais), com o propósito de passar a ideia de que é uma pessoa bastante informada, que sabe do que fala. É igualmente importante apresentar uma ou duas ideias soltas, que tenha ouvido de um qualquer comentador político, para parecer que costuma pensar aprofundadamente sobre o estado do país e que até tem as soluções necessárias.

Passo 7

Insultar, de forma gratuita, todo e qualquer político. Como vê, já não interessa se é o primeiro-ministro – a quem é dirigida a carta – ou pessoas que pertencem ao governo, trata-se isso sim de insultar toda uma classe. Escusado será dizer que é essencial o uso de palavrões.

Passo 8

Insinuar que vai emigrar. Não é relevante se tenciona mesmo fazê-lo, o que se pretende é apenas ameaçar o primeiro-ministro com a ausência de Portugal. Fazê-lo sentir-se mal por um cidadão tão espectacular como o autor ir viver para outro país. Trata-se de atingir as suas emoções, desencadeando nele sentimentos de culpa e vergonha que certamente o levarão às lágrimas e o forçarão a repensar toda a sua atitude.

Passo 9

Despedir-se cordialmente, para mostrar que apesar dos insultos gratuitos, o autor da carta é uma pessoa bem-formada que, mesmo estando absolutamente revoltada, ainda assim é superior ao demonstrar boa educação. Colocar o seu nome no final, para se certificar que as pessoas se lembrarão de quem escreveu a carta.

Passo 10

Partilhar a sua carta em todas as redes sociais, durante um momento de maior agitação social, acompanhado de um comentário como “Já chega!”,  “A paciência tem limites!” ou “Desabafo de uma geração”.

Passo 11

Volte, normalmente, ao seu emprego, emprego esse que muitas vezes não tem qualquer relevância social ou que prejudica a sociedade porque, por exemplo, é desempenhado numa empresa que se centra exclusivamente no lucro, sem preocupações qualitativas ou éticas, contribuindo assim para perpetuar muitas dos vicíos do sistema. De seguida, saia do seu emprego e vá comprar gadgets, carros ou roupa de que não precisa e, nas próximas eleições, lembre-se de votar outra vez nos partidos que estão, rotativamente, no poder.

Passo 12

Sinta-se um revolucionário por ter escrito uma carta aberta ao primeiro-ministro.


Crónica de Amílcar Monteiro
O Idiota da Aldeia
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