Desaforo Ortográfico – Amílcar Monteiro

Acordo: “Harmonia entre pessoas ou coisas. Concórdia, entendimento. Combinação ajustada entre duas ou mais pessoas. Pacto. Autorização, consentimento. (…)”.

Fica sempre bem começar um texto com uma citação ou com uma definição do dicionário, não é leitor? Claro que, muitas vezes, a definição pouco tem a ver com o texto e serve apenas para o autor aparentar ser um intelectual. Mas neste caso faz algum sentido, como o leitor perceberá de seguida.

Se tivermos em conta que um acordo pressupõe uma combinação que foi ajustada por duas ou mais partes, então eu não entendo muito bem isto do Acordo Ortográfico. É que, aparentemente, foi realizado um acordo no qual eu estou incluído mas ninguém me consultou. E isso não se faz. O que é que custava ligarem-me e dizerem: “Olá Amílcar, tudo bem? ‘Tás melhor do fungo no pénis? Olha, não sei se sabes mas o Brasil, Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde telefonaram. Querem estabelecer um acordo ortográfico, com o objectivo de defender a unidade essencial da língua portuguesa para potenciar o seu prestígio internacional, e nós queríamos saber a tua opinião.”

Era extremamente simples e, se o tivessem feito isso, talvez eu não recusasse  imediatamente este acordo e pensasse: “Espera lá… se calhar prejudicar as pessoas que sempre fizeram o esforço de escrever de forma correcta a língua do seu país de origem em prol daqueles que só dão erros e se estão a marimbar para isso é, de facto, a melhor forma de prestigiar a língua portuguesa a nível internacional. Isso permitirá que os asnos que escrevem pseudo-palavras que tornam complicadíssimo entender o sentido de qualquer frase, passem a ser conhecidos internacionalmente.” Pensava isto e depois opunha-me na mesma. Mas ao menos respeitava o facto de terem procurado saber o meu ponto de vista. Era um gesto bonito.

E agora eu pergunto: é mesmo isto que nós queremos? Agravar ainda mais a nossa imagem no estrangeiro ao dar a conhecer opiniões de pessoas cuja única coisa que lêem é o Correio da Manhã e a Caras, e que agora se acharão com competências para escrever um livro que circulará por meio mundo? É que para pessoas que não sabem escrever e são conhecidas, já basta a Margarida Rebelo Pinto.

Mas não quero ser injusto. Este “acordo” traz também vantagens, nomeadamente a uniformização da linguagem, o que permitirá finalmente que os vários povos se compreendam. Por exemplo, a partir de agora, os brasileiros vão perceber que quando um português escreve “actor”, se quer referir a um “ator”. Isto vai possibilitar que a literatura criada por escritores portugueses possa, finalmente, ser lida noutros países, algo que nunca aconteceu antes.

Como ninguém se preocupou em saber a minha opinião, eu só irei aderir ao acordo ortográfico quando for feito um referendo a esta questão ou quando me apontarem uma arma e me obrigarem a escrever “Egito”. Até lá, e tendo em conta que foi feito um acordo em meu nome mas sem o meu consentimento, vou processar o Estado por burla.

Artigo 217.º – Burla

       1 – Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.



Crónica de Amílcar Monteiro
O Idiota da Aldeia 

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