Um dia há-de ser Natal – João Nogueira

É domingo. Mas domingo à noite. As férias já vão na Guiné. Ou no Nepal.

Acabaram. Os olhos ficam pequeninos. Vou de moreno a branco em meia-dúzia de segundos. É Verão, eu sei .Lamento, em mim é Inverno. Hoje, sou um limpa-pára-brisas a sacudir a chuva para longe. Mas ela não vai.

Isto passa. Amanhã, talvez. Depois de amanhã, seguramente.

Sou uma estranha forma de vida. Queixo-me das rugas. Dos cabelos brancos. Do tempo. Aliás, sou um sindicato inteiro de homens e mulheres a fazer escarcéu contra o tempo. Faz cem metros em quatro segundos. Passa num instante! É um trafulha! E eu gosto é de gente honesta!

Vivo na via esquerda da vida. Quero chegar rápido. Errado. Isso é contra-ordenação. A vida é um carocha azul-bebé, em terceira, a passear na marginal do Douro. Devagarinho, a olhar para a Foz. Mas com olhos de ver!

Agarro-me ao sonho. Cravo-lhe  bem fundo as unhas. Não quero que vá à vida dele. Sou sábado. Sou uma noite de Agosto no alpendre da Elsa, de manga curta, a beber sangria fresquinha e a rir.

Vivo à espera que o tempo passe, para entrar a vida. Errado, outra vez. A vida também tem segundas-feiras e dias para preencher a papelada do I.R.S.

Neste balancé que é a vida já fui empurrado para o chão uma ou outra vez. Puseram-me mercúrio no cotovelo e nos joelhos, mas não era aí que doía. Atenção, sem dramas! Na maior parte das vezes não caio. Parece que tenho quatro anos outra vez e o meu pai dá balanço, enquanto a minha mãe fica à frente para não me deixar cair. É bom.

Às vezes, a vida bifurca. Ou é para aqui ou para ali. Agora escolhe!

Ficas a meio. Ameaças ir para aqui. Ameaças ir para ali. Queres os dois. Só pode ser um.

Sou do Porto. A minha família também. Família, não. Pai. Mãe. Irmã. Assim é mais justo. A minha outra família é de Lisboa. Outra família, não. Namorada. Assim é mais justo!

Eu sou deles todos. São a minha Pátria. Falamos todos a mesma língua, sem abrir a boca. Temos a gramática nos olhos. E nas pernas. Que tremem, quando nos vemos à chegada. E à partida.

Quero estar com todos num só lugar. Mas não dá! A Ana, que é minha irmã, está a Norte. A Elsa a Sul. Eu nunca chego a estar em banda alguma. Sou um atleta, apesar da ausência de abdominais. Tive-os, outrora. Entretanto faleceram. Sou o que corre como um desalmado atrás dos pontos cardeais. O Norte, de segunda a sexta. O Sul, ao sábado e ao domingo. Mentira! O domingo não conta! É como o último dia de férias. Custa mais. Custa mais pensar que vais sentir saudades do que senti-las, de facto.

Ora angústia, ora felicidade. Sou eu, o João. É isto! Estou resumido.

Sempre com o farnel de um lado para o outro, com o cabelo erecto e com os olhos ora vivos, ora murchos. Sempre a arrastar a mala. Em Santa Apolónia ou em Campanhã, a música é sempre igual. “Senhores passageiros, lamentamos informar que o comboio Intercidades com destino a Freixo de Espada à Cinta está setecentos e sete minutos atrasado. Pedimos desculpa pelo incómodo. Ainda que ligeiro.” Quem corre por gosto também cansa!

Mas o amor é uma fixação geográfica onde aterro sempre que chego a um sítio ou a outro. Passo sempre pela porta de embarque sem tirar as moedas do bolso, sem mostrar o passaporte. Terrorista é todo o homem que nunca pensou desembarcar ali. Porque, ali, nas chegadas, há sempre alguém à minha espera.

Alguém, nunca todos. Nunca todos ao mesmo tempo. A Ana. A Elsa. O meu pai. A minha mãe. Isso é que era. Era Natal. Aquele de quando tinha sete anos!

Estou com a língua de fora. Sou um maratonista exausto, dobrado sobre mim, com a mão na barriga, a respirar com muita força. Transpiro, também!

Eu já decidi! O que é raro! Não me levem a mal.

Vou atrás da vida. Por esta luz que me alumia, se não é a decisão mais difícil que tomo, desde que saí disparado, placenta abaixo, do ventre da minha Mãe. Não vou hoje. Nem amanhã.

Mas vou.

Um dia há-de ser Natal. Aquele de quando tinha sete anos.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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