Escola Primária. A minha. – João Nogueira

A minha escola primária sabia a pão com geleia…

Chovia sempre muito…

A minha escola primária era o Júlio a comer iogurte, era a letra bonita do Chita, era o cabelo loiro da Sabrina, era eu, de calças de bombazina castanhas com remendos nos joelhos e um capote alentejano, que mantinha a temperatura do meu corpo a uns fresquinhos seiscentos e setenta e sete graus.

A minha escola primária era um campo de terra batida onde se jogava ao berlinde. Era um autódromo onde se faziam grande prémios do Mónaco em pistas desenhadas a giz e em que todos fazíamos as curvas sem reduzir.

Era uma baliza de duas pedras, com uma linha de golo imaginária, onde eu tentava imitar o Vítor Baía, voando sobre o céu de Rio Tinto, acabando, sempre, por aterrar de emergência na lama e reduzir a já de si curta esperança de vida dos meus dentes de leite.

A minha escola primária era eu, trapalhão, a picotar e a recortar por fora e a produzir estalactites de cola UHU, que iam do meu polegar ao meu indicador, passando pelos outros dedos todos.

A minha escola primária era eu, daltónico, a pintar a bandeira de Portugal com guache castanho.

Era eu, intrujão, a dizer à professora que não tinha feito os deveres porque no dia anterior tinha tido uma dor forte nos dentes do siso. Às vezes também dizia que me tinha cortado a desfazer a barba.

Ela, claro, perguntava-me se eu estava melhor.

A minha escola primária eram sebentas, filas de quês de quaquá, ésses de sapo e pês de pato.

Na minha escola primária rezávamos o Pai Nosso. Todos! Até os que achavam que Ele não estava no céu.

Pedíamos para Ele nos perdoar pelas nossas ofensas e, a seguir, com o livro aberto, continuávamos a ler coisas católicas. O Papá papa o pipi da titi!, por exemplo!

 Na minha escola primária não havia mimo. Os grandes tinham a mania da perfeição. Para que nada saísse da linha, usavam réguas. Que sabiam ler a sina.

Ninguém conhece as rotundas, as cedências de passagem e as bifurcações das linhas contínuas da minha mão, como a régua da minha escola primária.

Eu não sei se fui feliz na minha escola primária. Se fui, a culpa é do Júlio, do Chita, da Sabrina, da Liliana, da Joana, da Olga, da Dulce…e esses, por mais que cresçam, que usem barba, pera ou suíças, na minha cabeça vão estar sempre lambuzados e besuntados de cornetto de chocolate, a brincar aos legos, a mexer em plasticina, a jogar ao mata e ao um dois três macaquinho chinês.  A minha escola primária, infelizmente, foram só eles. Que eram tanto!

O resto foi asma. Sufeca, como se diz aqui.

Sim, nunca me esqueci da tabuada, sei de cor a sequência dos reis e o nome dos tratados, sei que não se diz “tu há-des aprender, ouvistes, meu estapor. A gente os dois fala quando chegar-mos a casa”,  sei que existem gados caprinos e asininos, sei fazer a prova dos nove, sei que os de Castela eram maus como as cobras e sei que, no Algarve, a temperatura é relativamente mais quente do que na Serra da Estrela.

Porreiro! Para ter sido mesmo brilhante, faltou-me ter decorado o décimo sétimo apeadeiro da linha do Tua, a contar desde a Ucanha.

A minha escola primária gostava de estar com as persianas das janelas fechadas. Às escondidas, nós, os pequeninos, abríamos as frinchas, empoleirados uns nos outros. Lá fora, o mundo!

Bofetadas, reguadas, sapatadas, fila dos bons, fila dos “mais ou menos” e fila da “miséria”. Cópias, ditados, contas, Avé Maria cheia de graça, outra cópia e outra bofetada, uma reguada por escrever “Pai Noço”, um puxão de orelhas e respectivo arregalar de olhos porque leio mal a palavra “cágado” e transformo a pobre tartaruga num adjectivo sem hábitos higiénicos.

Um berro de megafone a dois centímetros do meu ouvido e sou o epicentro do meu próprio sismo. Um maremoto de perdigotos, também. Tremo em cima do estrado, apesar do calor. Só não urino porque era o melhor da turma a controlar os esfíncteres…

Tudo porque a “perninha” do “d” estava zero vírgula quatro decímetros abaixo da linha. É compreensível!

Sou despromovido.Despeço-me da fila dos “mais ou menos” e desço, num escorregão em espiral, à fila da “miséria”. A fila dos depositados, dos feios, do ranho no nariz, dos maus. Como eu! Como eu me senti!

Atenção.

Há um motim surdo naquela fila. Limpamos o nariz com o braço. Costas direitas. Peito feito. Somos uma seita de meninos pequeninos a entrar em erupção.

A revolução começa.

Toca a fazer o teste com caneta de filtro verde-fluorescente.

Sem querer, por não saber as cores, faço o teste a violeta-escuro. Não faz mal. Não traio a revolução. Os camaradas conhecem-me!

É Carnaval. Há um que vai de Robin dos Bosques. A professora diz que estão todos muito bonitos. Menos o Robin. O preferido dela era um que ia de metralha! As metáforas são o melhor da vida…

Aos meus amigos pequeninos, e só a eles, o meu obrigado pelo pão com geleia!

 

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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