**Estreia** Faço 33 anos em Julho… – João Nogueira

“Anteontem”, tinha 7 e estava a treinar o “quê de quaquá” maiúsculo num caderno de duas linhas. “Anteontem” pintava a bandeira de Portugal de castanho e a professora, simpática, perguntava-me se eu “era burro ou o quê?” Explicava-lhe que era daltónico, que não sabia as cores e que, para mim, azul, roxo, cinza-rato ou amarelo-torrado era tudo igual. Mais calma por ter percebido que tinha sido injusta, deu-me um berro e disse que isso era mimo. A seguir, meiguinha, pediu-me um favor: “João, vai-me buscar a guilhotina azul-bebé à arrecadação e traz também a sebenta magenta que está na segunda prateleira”. Às vezes também se zangava comigo por eu não utilizar o acento gráfico na palavra “cágado”, mas depois caía nela e sempre que se despedia de mim, dizia para eu ter sonhos cor-de-rosa. Sinto a falta dela.

“Ontem”, tinha 18 anos e já fazia a barba dia sim, dia não. Sonhava ser rico, entrar num curso que me garantisse emprego e que me permitisse viver sem qualquer tipo de preocupações. Consegui! Fui estudar para ser professor! Sendo do Porto, entrei em Lisboa. Mal lá cheguei, fui roubado. Sete contos e quatrocentos, que tanta falta me fizeram no Peep Show do Rossio, um local onde umas moças de peito 78 copa C se despiam e um indivíduo olhava desinteressadamente! Aquilo acabou em apertos de mãos e foi reconfortante ouvir dos ladrões que, a partir dali, sempre que me vissem, não me iam roubar. Deram-me, inclusive, os parabéns pela minha postura e disseram-me que todos os indivíduos que são assaltados deviam pôr os olhinhos em mim. Como não sou insensível e gosto de ser bem tratado, fiquei lisonjeado, claro. Durante uns tempos, ainda lhes mandava um sortido e uma garrafinha de Porto no Natal. Depois, é como tudo, longe da vista, longe do coração e perdemos o contacto.
Naquele ano não quis gostar de Lisboa. Ligava para casa a soluçar e a dizer à minha mãe que aquilo era só pretos! A minha mãe dizia-me que eu não podia ser racista. Dizia-me que se fossem ciganos era bem pior!

“Hoje”, tenho quase 33 anos. Ainda vivo com os meus pais. Não me quero precipitar nem parecer demasiado emancipado. Daqui a um ou cinco anos penso na possibilidade de alugar umas águas-furtadas num sítio calminho. Talvez ali no Lagarteiro. Mas cada coisa a seu tempo.
Sou, hoje, também, um fulano apaixonado. Muito. É mau para a tensão arterial, mas Nela é sempre sábado e férias de Verão. No entanto, eu e a minha moça temos um ou outro problema. Estrutural.
Os filhos são uma preocupação e, para já, temos zero!
A minha moça – só não digo o nome dela porque não gosto muito de falar na minha vida privada – quer que ele se chame Raimundo ou Toninho.
Disse-lhe, Elsa, ok, Raimundo e Toninho são muito bonitos, mas preferia que fosse Ulisses Adão. Ela disse que não gostava muito de Ulisses mas que Ulisses Adão até ficava bem.
Depois disse-lhe que, mal tivesse a ecografia, ia às Antas fazer do cachopo sócio do Porto. Ela, benfiquista e irónica, disse que na ecografia o puto já podia ter “praí” três semanas e isso é muito tarde. Sugeriu que eu tirasse uma fotografia a um ou outro espermatozoide e a apresentasse no Dragão. Afinal podia estar ali o nosso filho!
Disse-lhe “Amor, como é que não pensei nisso antes?”.
Ela, primeiro, disse para eu parar de lhe chamar “amor”, que é azeiteiro. A seguir, disse ” Docinho, não vou estar ali com contracções uterinas e muito menos com rompimentos da bolsa de líquido amniótico para ter um filho portista! Era o que faltava!
Passaram-se dias e voltámos a falar em filhos.
Ela, católica, disse-me ” Moranguinho, estou ansiosa que o menino entre para a catequese, cante uns salmos e umas hossanas, tome a hóstia e que, quando pregar o primeiro prego, diga que quer ser carpinteiro como o S.José”
Eu, ateu, mostrei-lhe a minha perspectiva ” Linda, se calhar, e porque nunca se sabe, de cada vez que estivermos todos transpirados nessas cenas do pecado da carne, pomos música litúrgica, não vá o puto sair Muçulmano ou Jeová. Ah, e não quero que o Ulisses seja carpinteiro.
Ela disse para eu não lhe chamar “linda”, que é azeiteiro.

“Amanhã”, porque o tempo é um intrujão que não passa sempre da mesma forma, terei 47 anos, menos cabelo, e rugas a sudoeste dos meus olhos castanhos – é o que dizem. A mim, parecem-me sempre azuis-bebé. Nessa altura, se o meu país deixar, gostava de ter um T1. No Lagarteiro, em Santana da Carnota ou no norte da Conchichina. Só para mim, para Ela e para o Ulisses Adão. No fundo, é Neles que vou viver.

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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