“Anteontem”, tinha 7 e estava a treinar o “quê de quaquá” maiúsculo num caderno de duas linhas. “Anteontem” pintava a bandeira de Portugal de castanho e a professora, simpática, perguntava-me se eu “era burro ou o quê?” Explicava-lhe que era daltónico, que não sabia as cores e que, para mim, azul, roxo, cinza-rato ou amarelo-torrado era tudo igual. Mais calma por ter percebido que tinha sido injusta, deu-me um berro e disse que isso era mimo. A seguir, meiguinha, pediu-me um favor: “João, vai-me buscar a guilhotina azul-bebé à arrecadação e traz também a sebenta magenta que está na segunda prateleira”. Às vezes também se zangava comigo por eu não utilizar o acento gráfico na palavra “cágado”, mas depois caía nela e sempre que se despedia de mim, dizia para eu ter sonhos cor-de-rosa. Sinto a falta dela.
“Ontem”, tinha 18 anos e já fazia a barba dia sim, dia não. Sonhava ser rico, entrar num curso que me garantisse emprego e que me permitisse viver sem qualquer tipo de preocupações. Consegui! Fui estudar para ser professor! Sendo do Porto, entrei em Lisboa. Mal lá cheguei, fui roubado. Sete contos e quatrocentos, que tanta falta me fizeram no Peep Show do Rossio, um local onde umas moças de peito 78 copa C se despiam e um indivíduo olhava desinteressadamente! Aquilo acabou em apertos de mãos e foi reconfortante ouvir dos ladrões que, a partir dali, sempre que me vissem, não me iam roubar. Deram-me, inclusive, os parabéns pela minha postura e disseram-me que todos os indivíduos que são assaltados deviam pôr os olhinhos em mim. Como não sou insensível e gosto de ser bem tratado, fiquei lisonjeado, claro. Durante uns tempos, ainda lhes mandava um sortido e uma garrafinha de Porto no Natal. Depois, é como tudo, longe da vista, longe do coração e perdemos o contacto.
Naquele ano não quis gostar de Lisboa. Ligava para casa a soluçar e a dizer à minha mãe que aquilo era só pretos! A minha mãe dizia-me que eu não podia ser racista. Dizia-me que se fossem ciganos era bem pior!
“Hoje”, tenho quase 33 anos. Ainda vivo com os meus pais. Não me quero precipitar nem parecer demasiado emancipado. Daqui a um ou cinco anos penso na possibilidade de alugar umas águas-furtadas num sítio calminho. Talvez ali no Lagarteiro. Mas cada coisa a seu tempo.
Sou, hoje, também, um fulano apaixonado. Muito. É mau para a tensão arterial, mas Nela é sempre sábado e férias de Verão. No entanto, eu e a minha moça temos um ou outro problema. Estrutural.
Os filhos são uma preocupação e, para já, temos zero!
A minha moça – só não digo o nome dela porque não gosto muito de falar na minha vida privada – quer que ele se chame Raimundo ou Toninho.
Disse-lhe, Elsa, ok, Raimundo e Toninho são muito bonitos, mas preferia que fosse Ulisses Adão. Ela disse que não gostava muito de Ulisses mas que Ulisses Adão até ficava bem.
Depois disse-lhe que, mal tivesse a ecografia, ia às Antas fazer do cachopo sócio do Porto. Ela, benfiquista e irónica, disse que na ecografia o puto já podia ter “praí” três semanas e isso é muito tarde. Sugeriu que eu tirasse uma fotografia a um ou outro espermatozoide e a apresentasse no Dragão. Afinal podia estar ali o nosso filho!
Disse-lhe “Amor, como é que não pensei nisso antes?”.
Ela, primeiro, disse para eu parar de lhe chamar “amor”, que é azeiteiro. A seguir, disse ” Docinho, não vou estar ali com contracções uterinas e muito menos com rompimentos da bolsa de líquido amniótico para ter um filho portista! Era o que faltava!
Passaram-se dias e voltámos a falar em filhos.
Ela, católica, disse-me ” Moranguinho, estou ansiosa que o menino entre para a catequese, cante uns salmos e umas hossanas, tome a hóstia e que, quando pregar o primeiro prego, diga que quer ser carpinteiro como o S.José”
Eu, ateu, mostrei-lhe a minha perspectiva ” Linda, se calhar, e porque nunca se sabe, de cada vez que estivermos todos transpirados nessas cenas do pecado da carne, pomos música litúrgica, não vá o puto sair Muçulmano ou Jeová. Ah, e não quero que o Ulisses seja carpinteiro.
Ela disse para eu não lhe chamar “linda”, que é azeiteiro.
“Amanhã”, porque o tempo é um intrujão que não passa sempre da mesma forma, terei 47 anos, menos cabelo, e rugas a sudoeste dos meus olhos castanhos – é o que dizem. A mim, parecem-me sempre azuis-bebé. Nessa altura, se o meu país deixar, gostava de ter um T1. No Lagarteiro, em Santana da Carnota ou no norte da Conchichina. Só para mim, para Ela e para o Ulisses Adão. No fundo, é Neles que vou viver.
Crónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua
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Parabéns João Nogueira pela sua crónica de estreia!
Mais uma vez, seja muito bem vindo a este espaço de opinião.
Aproveito ainda para enviar cumprimentos à Elsa e um beijinho ao Ulisses Adão que já deve estar crescidinho…
Por curiosidade: conseguiu meter o cachopo como sócio do FCP?????
Parabéns, a crónica está fantástica!! E, já agora, faço votos para que o “cachopo” venha mesmo a ser Portista:)
João, parabéns! Mais um texto fantástico!
Fantástico João Arfe!!! Fico a espera do livro e de ser o catequista do Ulisses! Santana espera por ti!
Muito obrigado, Laura. 🙂 Estivemos a pensar melhor e, se calhar, vamos mudar o nome do cachopo. Não é que Ulisses Adão seja feio, atenção! Mas acreditamos que Firmino Eleutério é mais “trendy”!
Ana, vamos acreditar que sim! 🙂
Elsa, muito obrigado!
João Nogueira
O nome é o que menos importa!
O puto já é sócio do FCP????
Isso sim, é muito importante!
Nico, muito obrigado! 🙂
Mais um grande texto, João! 🙂
Laura, vai ser! A mãe concorda, desde que eu ceda, também. Disse-me “João, ok, o catraio vai ser sócio do Porto. Mas vai chamar-se Eusébio Nené Humberto Coelho de Cardozo Lima!” Acho o “de” escusado e peneirento, mas prevalece a equidade. 🙂
João, uma vida a dois é feita de cedências!
O nome é um mal menor por uma boa causa mas… em vez de “Eusébio Nené Humberto Coelho de Cardozo Lima” porque não:
Eusébio Nené Humberto Coelho Cardozo Lima e Noventaidois” ????
Retirava o “de” (realmente foleiro e demasiado comum), colocava o “e” que sempre dá outra pinta ao puto e acrescentava “Noventaidois”.
Nos últimos dias, tenho ouvido falar muito deste jogador…
É só a minha sugestão, vale o que vale!
Muito obrigado, Eduardo! Um abraço!
Uau, João!!
Fantástico, aliás como sempre!!
Excelente texto de estreia, que desejo de todo o coração que seja o primeiro de muitos sucessos!
João, és grande.
Espero que o meu ‘sobrinho’ Ulisses venha a ser um escuteiro bem querido! eheheh
Pois faltava o meu comentário. Ou não. Mesmo assim, aqui vai. Eh páh (uso e abuso desta expressão), a Vanda é que tem razão: és grande. Podias ser maior mas depois a tua moça, aquela a quem não atribuis nome, tinha de comprar uns stiletto ainda maiores. E eu sei que salários de professores não dá para comprar Manolo Blahnik todas as semanas… Mas só sei porque me dizem.
Quanto à discussão do nome já sabem a minha opinião: Vitor Baía. Sem qualquer dúvida!
Grande João, esperamos pelo próximo…