Filho do vento – André Marques

Helena observa, cuidadosamente, o vaso grande com a boca mais larga que o fundo. Os lábios que chamam os cães. Aproveita a libertação dos olhos para os rodar em todas as direções. Fixa novamente o invólucro padronizado – verde esperança, por sinal -, e uma vez mais obedece a todo o espaço que a rodeia. Com a frieza de um sol de inverno. Encontra-se só. Sem perigo aparente. Apenas o seu corpo e o do bebé que carrega nos braços descaídos. Bebé que tristemente pariu e que agora chora silenciosamente. Ato contínuo. Num feito de loucura descontrolada, alude a criança para o interior do contentor como se de um trapo se tratasse. Rodilha velha. Acabada. O recipiente atulhado em lixo. O pranto do recém-nascido é agora um som abafado. Uma luta destemida pela sobrevivência. Chora à mãe, de boca fechada. Chora por tudo aquilo que o possa salvar. Da morte. E a morte é apenas um aperitivo para grandioso prato principal. Queimada. Queimada viva. O feto continua a berrar, a esguichar. Por Deus.

Por fim, Helena afasta-se, lentamente. Junta-se à bicicleta – meio de transporte que a trouxe até ao local do crime -, e desaparece enquanto o dia começa a surgir vagarosamente. Tudo começa a desvanecer. A tornar-se inaudível. Provavelmente o fim da vida. Deve ser.

A desesperança é muitas vezes motivo para intrigantes posições. Conveniente. Mas o desespero move as pessoas. Como se conseguissem andar sobre a água gelada. Imaginem! Eleva-as a graus de loucura nunca antes vistos. Como abandonar um filho, por exemplo. Preferem oferecê-lo ao inferno a dá-lo para a adoção. Por vergonha, quem sabe. Evitam a legalidade. E pronto. Os meios alternativos. Optam a morte, como se mais nenhuma outra solução houvesse. E daí? Quem somos nós para julgar quem quer que seja? Por Deus, deixemo-nos de santidades ridículas, afinal, os erros são como as alforrecas; possuem imensos tentáculos e, sobretudo, servem para ser dados. Não importa a natureza. Nem de que são feitos.
Progenitoras como a Helena sofreram horrores no passado. Inevitável. Ou por violência doméstica. Ou por abandono do companheiro. Ou por outra merda qualquer. Mas nada justifica. O certo é que quando uma mãe tenciona renegar um filho, fá-lo pensativamente, estrutura incrivelmente um plano e consegue metê-lo em marcha. Sem dó nem piedade. Como se o bebé fosse um pacote de leite estragado pronto a ir para o lixo depois de terminado o prazo de validade.

É um pouco ridículo, confesso. E estou a ser demasiado brando. Estúpido que sou. Mas acredito sempre que há um motivo válido para as coisas acontecerem. Talvez seja por confiar demasiado nas pessoas. Mas vamos ao que interessa. Inequivocamente. Vamos mesmo ao que interessa.

Ser mãe é quase como comprar uma casa. Significa um investimento grandioso. No sentido positivo, claro está. E esse tiro impetuoso começa mesmo antes do nascimento da criança. A grande e impiedosa responsabilidade.

Ser mãe é praticar o aconchego. O conforto. Criar um novo vigor. É dar segurança e amar sem reservas. E não é uma reserva natural qualquer.

Não sou mãe. E também não sou pai. Mas, felizmente e devido à educação que obtive na infância, não me é difícil de todo perceber aquilo que é aceitável ao ser humano e o que é considerado condenável à sociedade em geral. Básico. O mais importante foi sempre ter entendido que o amor de mãe é o melhor do mundo. E arredores. E tive tanto que agora tenho ainda mais para dar. É assim. Continuemos.

Ser mãe é recordar com apego o momento em que o filho pontapeia a barriguinha pela primeira vez. Qual jogador de futebol. Qual Ronaldo.

Ser mãe é ter olheiras ternurentas, angustiar-se com os choros inexplicáveis. É chatear-se sem nunca perder o amor. E ele às vezes perde-se. Perde-se na raiva, nas opiniões infundadas, naquilo que os outros pensam. Perde-se e pronto.

Ser mãe é presenciar de perto as descobertas do filho. Sempre. É sentir a mãozinha a procurar proteção. Nesta ou naquela parte do corpo. Não interessa. Quando há mãe, há entrega total. Para o bem e para o mal.

Ser mãe é assistir ao crescimento do filho. Medir cada centímetro.

Ser mãe é reinventar-se a si mesma. É voltar a sentir aquela chama pelo marido. A chama apagada do passado. É fazer renascer o romantismo.

Ser mãe é encher a boca de sorrisos por ver o filho marcar aquele golo importante. Lá na escola. Ou no jardim de casa, com amigos.

Ser mãe é saber descer do pedestal quando é necessário. Esquecer o nível e proteger a criança ao máximo. É bom. E sabe bem.

Ser mãe é esperar, pacientemente, o momento de ser avó. Para renovar os sentimentos. Para ganhar novas experiências. Para experimentar um novo tipo de amor. Ou dar continuidade ao anterior. Numa outra dimensão. Numa nova era.

Ser mãe é isto e muito mais. Acredito piamente. Acredito que seja algo que transcende a realidade. E ainda bem que assim é.

Ser mãe é dar azo ao sorriso. É esquecer as lágrimas mesmo quando elas teimam em formar rios de dor por todo o corpo. Pelo meu. Pelo seu. Pelo de todos nós. No fundo, somos mães a tempo inteiro, porque afinal, e como já o disse; o amor de mãe é o melhor amor do mundo. E não há melhor coisa que espalhar pelos outros o amor verdadeiro, genuíno. O amor incondicional.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
Crónicas Improváveis
Visite a página do Facebook do autor: aqui