O Idiota da Aldeia – Mundo Estranho

Desde pequenos que todos nós sofremos uma lavagem cerebral de pais e professores no sentido de não interagirmos com estranhos. Somos aconselhados a não falar nem aceitar coisas deste grupo pois, aparentemente, todos os estranhos são tarados sexuais, que transportam pacotes de doces e apreciam longos passeios pelos parques infantis. No entanto, para mim esta sempre foi uma questão confusa e pouco clara.

Primeiro, nunca ninguém me definiu muito bem o que é um “estranho”. É alguém que é fisicamente estranho? Alguém que tem uma corcunda ou seis dedos numa mão? Ou será que é um deficiente? Quer isso dizer que devo ignorar pessoas com deficiências físicas e mentais? Não me parece lá muito correcto, mas explicaria o comportamento de algumas pessoas.

Mas vamos assumir que um estranho é simplesmente alguém que não conhecemos. Assim sendo, só a nossa mãe é que não é estranha, pois cuspiu-nos de dentro dela e isso, parecendo que não, garante algum grau de familiaridade. Mesmo o nosso pai não passa de um gajo qualquer que fornicou a nossa mãe e que, por acaso, vive na mesma casa que nós. Significa isso que não devo falar com o meu pai? E posso ou não interagir com aquelas trigémeas suecas ninfomaníacas que querem combinar qualquer coisa comigo? E se o Nelson Mandela me quiser dar uma palavrinha, devo recusar dialogar com ele? É que os pais e professores nunca nos dizem quando é que podemos começar a falar com estranhos. Porque se eu não posso falar com nenhum estranho ao longo da vida, então como é que vou travar amizades? Depois admiram-se que existam eremitas que disparam sobre qualquer pessoa que vejam.

Só que a confusão não acaba aqui. Afinal, quanto tempo demora ou o que é preciso para que um estranho deixe de ser um estranho? Dias? Semanas? Anos? Será preciso viver um determinado número de experiências em conjunto? Quantas? Ou será precisa apenas uma experiência intensa e unificadora, como nós e um estranho estarmos com diarreia ao mesmo tempo e só existir uma casa-de-banho? Temos que ser mais criteriosos na definição destas coisas.

A trama adensa-se ainda mais quando pensamos que não podemos aceitar coisas de estranhos. Eu percebo que, em criança, não se aceitem doces daquele senhor de idade que, em troca, pede para fazermos festinhas no gatinho sem pêlo que ele tem dentro da gabardine, mas é só dele que não devemos aceitar? Já não faz mal aceitarmos a hóstia do padre, aquando da primeira comunhão? Eu cá não conheço o padre de lado nenhum e todos nós sabemos o historial dos padres no que toca a estas questões. E podemos aceitar a comida e prendas dadas pelo do nosso pai, esse estranho que vive em nossa casa e passa os dias à nossa volta?

Acho tudo isto muito estranho. E como se não bastassem todas estas dúvidas, de tanto ter escrito “estranho” ao longo deste texto, a própria palavra “estranho” já me está a parecer estranha.

Crónica de Amílcar Monteiro
O idiota da Aldeia