No dia em que te reconheci… – João Nogueira

Lembro-me do dia em que te reconheci. Em que te conheci pela segunda vez.

Era Agosto. O melhor mês do mundo.

Lá, no teu sítio, onde dizem que a luz é mais branca e onde o Tejo serve de pista aos cacilheiros, reapareceste-me.

Deus, outra vez Deus, a tentar comunicar comigo.

Eu e Ele vivemos em lugares distantes um do outro. Entre nós há sempre pouca rede e só um pauzinho de bateria. Se calhar a culpa é mais minha do que d´Ele.

És de longe e conheci-te aí. As duas vezes.

No dia em que te reconheci andava a pedir esmola. Não pedia moedas, atenção. Pedia amor! De resto, o procedimento era igual.

Tu, que nunca dás moedas, não me deste esmola. Era o que faltava! Mandaste-me trabalhar, que tinha bom corpo. Depois, colocaste os óculos na ponta do nariz, olhaste para a minha barriga, onde dantes habitavam os meus falecidos abdominais, e disseste que, afinal, eu tinha apenas um corpo razoável.

Esmola é para os pobres. De espírito!

Ensinaste-me, logo nesse dia, que não existe passado nem futuro. Só presente. Disseste que a vida era uma soma de presentes do indicativo.

Falámos muito, nesse dia. Do passado!

Elenquei-te uma data de coisas importantes que tinha feito nesse hiato de quinze anos que passaram desde o dia em que te conheci e o dia em que te reconheci. Mostrei-te fotografias de quando tinha um corte de cabelo espetacular, com meia-dúzia de madeixas, curto e com repas à frente, risco ao meio e grande e encaracolado atrás. Riste-te. Não para mim. De mim!

Continuo sem saber porquê.

A seguir, falámos de comida. És do sul. Mandaste vir caracóis. Daqueles com os corninhos ao sol. Depois, espetaste o palito no bicho e comeste-o. Mais romântico era impossível.

Disse-te que tinhas gostos estranhos. A seguir pedi punheta de bacalhau!

Falei, falei, falei, porque, na altura, gostava muito de me ouvir. Pensei que te ias encantar com o meu talento.

Mas não!

Pediste-me, por essa luz que te alumia, para eu não me esforçar para parecer erudito.

Dizes-me que és escuteira. Falas, falas, falas. Mostras-me, com a tua lanterna, a grandeza que há em ser simples. És tão pequenina, és tão grande!

Percebo que me liberto, aos poucos, enquanto falas. Escuto-te. Mas com olhos de ver.

A minha pequena dor, contigo, está a sarar. Fazes-me bem. Parece que estás a bufar devagarinho para a minha ferida. É fresquinho! Já não dói.

No dia em que te reconheci, ia aqui, ali e acolá, sozinho, atrás não sei de quê. Estava triste.

Esquecer um amor leva tempo. Vais sofrer como amaste, dês tu as voltas que deres. Vais sofrer na medida em que amaste. Se deste um beijinho fantástico ao pôr-do-sol, vais pagá-lo, quando deixares de o ter. Se deste um abraço daqueles em que fechas os olhos com muita força, vais pagá-lo. Se foste para Londres, de férias, e tomaste um café quentinho em Notting Hill enquanto lá fora trovejava, vais pagá-lo. Em lágrimas, se tiveres sorte. Só não choras se tiveres azar. O choro só te ajuda, quer dizer que está a passar.  O não choro, não: é uma simulação de inferno. É só para gente grande. Gente que sabe que tem de morrer para voltar a nascer.

Tu, que te queixas que eu digo muitos palavrões, libertaste-me. De mim!  Exorcizei-me e deixei de ter tiques, caramba! E sem grande escarcéu!

Gosto muito de ti. Desde o dia em que te reconheci. Conheci-te duas vezes pela primeira vez, meu amor. Mas só a segunda foi a primeira.

No dia em que te reconheci, estava sol. Os meus pais estavam no Alentejo. A Ana no Porto. Soube logo de que farinha eras feita. Falámos de amor, depois de vermos dois velhinhos aos beijos, em Belém. Mas dois velhinhos mesmo. Daqueles que já ultrapassaram a esperança de vida em trinta e três anos.

À socapa, porque és curiosa, deixas de me ouvir. Queres é ouvir os velhinhos.

Abres a boca. Tapas a boca com a mão. Desfazes-te a rir. O velhinho tinha dito à velhinha que a pernoca octogenária dela continuava a adiar aquilo que já devia ter vindo há muito tempo.

De Pastel de Belém na mão, disseste-me que o amor não se pergunta. Ele exprime-se por ele. Não precisa de cordas vocais. O amor está nos olhos, nunca nas palavras. Elas só atrapalham, disseste-me.

Disse-te que não.

Disseste-me que sim.

– E não…

– E sim…

– Desculpa, Susana. Tu não percebes patavina de amor. Aliás, percebes tanto de amor como eu percebo de columbofilia islandesa ou de agropecuária tchetchena.

Riste-te

– Susana, se o amor está só nos olhos, porque é que eu estou a tremer desde que cheguei à tua beira. Que eu saiba, não tremo com a íris nem com a córnea. Dá-lhe liberdade, deixa-o vir por ai abaixo. Não o engaioles nos olhos…

(Coras)

– Bolas! Ricardo, não gosto que digas “à beira”. Diz antes “ao pé”.

Rio-me.

– Susana, não gosto que digas “bolas!”. Diz antes “merda!”

Hoje, em que te reconheço todos os dias, benzo-me sempre antes de me deitar. Não com as mãos a bater na testa e no peito. Benzo-me à minha maneira.

Sou grato. Tive sorte. Se calhar foi por segundos, porque não éramos para ser, não éramos suposto. Mas somos! Estamos no lado bom da Linha do Equador. Essa, que não dividiu o nosso mundo em dois.

Mudaste a minha meteorologia. És o Anthímio de Azevedo a dizer que a previsão do tempo para o resto da minha vida é sol. E quando chover, é só para, a seguir, haver cheirinho a terra molhada.

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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