Ó Amando bai fode-te! – Laura Paiva

Não há nada mais bonito do que ouvir uma criança, que mal sabe falar, a dizer um impropério.
Dizem-no porque ouvem e repetem ou porque foram ensinadas – há sempre alguém que se disponibiliza para o efeito!

Pois bem, no meu caso, foi o meu avô materno, que viria a falecer pouco depois de eu ter completado um ano.
Homem de grande porte (acaba de me ocorrer onde foi o meu filho buscar o gene da altura) e de poucas falas. Segundo sei, a minha mãe recebeu uma educação ríspida e o único toque físico que lhe era permitido, em criança, era colocar os pés em cima dos pés do meu avô, mãos em posição de dança e rodopiavam ambos como que bailando…

O meu avô tinha um talho no centro do Porto onde, além dele, trabalhavam a minha avó e a minha mãe.  Vida dura, com início na madrugada de cada um dos seis dias da semana em que o talho estava aberto. O Domingo era o único dia de descanso.
Para ele, nada estava acima ou à frente dos clientes.
O seu mau feitio era uma constante – há, inclusivamente, uma história de faca apontada à minha avó e à minha mãe!
Já depois de a minha mãe se ter casado, esteve a milímetros de levar um estalo dele porque, por brincadeira, acendeu um cigarro ao meu pai.

E eis que eu nasço, viro do avesso o mundo do meu avô, passando a ser a sua única prioridade e a sua ocupação a tempo inteiro!
Naquele talho, passa a ouvir-se a toda a hora “os clientes que esperem” “não me interrompam que estou a brincar com a menina” “agora não posso que vou dar o biberão à menina” “segura na menina na montra que vou por fora do vidro fazer-lhe caretas” ” Arminda, coze uma moela para a menina” “Esta carne não é para vender, é para a sopa da menina” “Pouco barulho que a menina já dorme”, etc, etc, etc…

É nesta altura que entra em cena o Armando – moçoilo novo contratado para ajudar no talho!
Mal sabia o Armando (a quem eu só conheço de fotografia)  que iria ser o bombo da festa… espero que ele a esta hora tenha perdoado o meu avô.

“diz ao Armando vai foder-te” e eu dizia “ó Amando bai fode-te”
“diz uma puta ao Armando”
e eu dizia “ó Amando ‘ma puta”
diz ao Armando um caralho” e eu dizia “ó Amando um caialho”

E assim reza uma pequena história de como um homem ríspido e frio se torna, quase da noite para o dia, no avô carinhoso do qual, infelizmente, não tenho nenhuma memória ou recordação mas que me deixou, em herança, o gene dos impropérios…

Crónica de Laura Paiva
O mundo por estes olhos