O Fardo da Infância – Amílcar Monteiro

É indíscutivel que a infância é uma altura crucial na nossa existência, uma altura que nos vai definir enquanto adultos. Deste modo, é importante que alguns factores essenciais estejam presentes durante esse período, para que nos possamos desenvolver convenientemente. Caso contrário, a infância vai-se tornar um penoso fardo que teremos que carregar para o resto da vida. E foi exactamente isso que me aconteceu. Por mais que me custe expôr-me, eu preciso de falar sobre isto, sinto necessidade de fazer esta revelação: infelizmente, eu tive uma boa infância.

Sim, não me orgulho de o dizer, mas a verdade é que tive pais afectuosos que nunca me faltaram com nada, que me transmitiram princípios e valores, frequentei boas escolas, tive bons amigos e sólidos modelos de autoridade. E para o leitor que está a pensar “oh, de certeza que não foi assim tão boa! Se calhar os teus pais foram superprotectores e mimaram-te demais…”, eu só lhe posso responder que os meus pais fizeram questão de não me dar tudo o que eu queria só para eu perceber que a vida não é fácil. Que cabrõezinhos mais sádicos, não é verdade?

O problema quando temos uma infância tão boa é que, dificilmente, o restante tempo de vida não será apenas uma sucessão de desilusões. Para além disso, quando esta fase inicial da nossa vida é tão perfeitamente temperada com todos os ingredientes do sucesso, todos aqueles que nos rodeiam esperam que nós realizemos grandes feitos. É uma pressão enorme e os mínimos esperados são que nos tornemos astronautas, neurocirurgiões ou mesmo astronautas neurocirurgiões.

Outro problema é o facto de, enquanto adultos, não podermos justificar, desculpar ou aligeirar os nossos erros como fazem os sortudos que tiveram uma infância terrível. Por exemplo, se eu me tornar num alcoólico, niguém vai dizer “oh, coitado, já era de esperar que ficasse, tendo em conta a infância que teve…”. Se, por um mero acaso, eu cometer homicídio, nunca conseguirei uma redução de pena baseada em “profundos traumas de infância provocados por um ambiente familiar disfuncional”. É uma sensação de impotência desoladora… Finalmente, este paraíso infantil onde fui forçado a crescer impossibilitou-me, automaticamente, de seguir profissões como rapper, de ter passatempos como o tunning e de ter comportamentos como andar de chinelos e meias simultaneamente.

Tendo em conta esta tortuosa experiência de vida, resta-me apenas certificar-me que, quando for pai, os meus filhos não sejam forçados a passar pelo mesmo. Para tal, farei questão de fazer coisas como: divorciar-me da sua mãe mal eles tenham idade suficiente para compreender o que o divórcio é; de chegar todos os dias bêbado a casa e bater-lhes sempre com o mesmo objecto (para que no futuro, sempre que vejam esse objecto, se lembrem das sovas); de não lhes dar absolutamente nada e os colocar na pior escola que achar, começando assim a moldá-los enquanto traficantes de droga; forçá-los a realizar trabalho infantil e ficar com todo o dinheiro; e minar-lhes a auto-estima ao gritar frases como “nunca serás ninguém”, “a culpa de eu estar a bater à tua irmã é tua” ou “um ovo não quer ter espinhos ” – esta última frase é propositadamente desprovida de sentido, visando apenas dificultar, no futuro, o eventual trabalho de um psicólogo que tente ajudar os meus filhos  a compreenderem a infância deles.

Crónica de Amílcar Monteiro
O Idiota da Aldeia
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