Objectivos nas urgências?

Vi hoje no Público que vai arrancar um projecto piloto para as equipas de urgência, que as penalizará (nos vencimentos) consoante o tempo de espera e retorno dos doentes àqueles serviços. Uma espécie de trabalho por objectivos, como acontece em muitas empresas.

Honestamente estou um pouco dividido em relação ao que li. Se bem que estas regras podem servir como motivação e incentivo extra – e extra porque se pressupõem que qualquer profissional de saúde cumpre escrupulosamente os seus deveres profissionais e deontológicos, mesmo sem incentivos –  para uma ainda maior atenção ao doente, àquilo que se antecipa que ele vai necessitar – nomeadamente, encaminhá-lo aos prestadores de cuidados de saúde primários (os centros de saúde), pois aí sim devem ser acompanhados -, de forma a evitar regressar às urgências, por outro lado, precisam de condições para o fazer.

Dito de outra forma, vejo como uma sempre bem vinda tentativa de maximizar a produtividade mas, sem os devidos recursos (especialmente recursos humanos), os serviços passarão a basear-se em números e não na qualidade prestada aos utentes.

Aqueles que frequentemente lêem a minha opinião já sabem que penso que o SNS não é nem pode ser lucrativo. Não é suposto o SNS dar lucro, pois no dia em que isso acontecer, o seu objectivo morreu. Não é possível garantir a prestação de cuidados de saúde de qualidade a todos os utentes do serviço, especialmente aos mais necessitados e esperar que o mesmo tenha lucro. Todavia, é necessário controlar a despesa para evitar ao máximo o desperdício e os custos para o Estado (aos mais distraídos, o Estado somos todos nós pois é alimentado pelos impostos pagos pelos contribuintes). Daí a preocupação com a produtividade.

Estou a contradizer-me? Não.  Porque melhorar a produtividade significa que cada um dos profissionais, quer os de saúde quer os que os apoiam, dão um pouco mais de si e/ou melhorar aquilo que já faz, mas não significa que cada um tenha de fazer o trabalho de 2 ou 3 pessoas (às vezes mais). Por isso há que respeitar a racio de “x” profissionais para cada “y” utentes prevista.

“aos mais distraídos, o Estado somos todos nós pois é alimentado pelos impostos pagos pelos contribuintes”

Cabe ao Ministério da Saúde (e o seu “polícia” Ministério das Finanças) colmatar primeiro a falta de recursos humanos no SNS, seja nos centros de saúde (cuidados primários), quer nas urgências, para depois poder exigir maior qualidade no atendimento. Não se pode, por exemplo, exigir a um Centro de Saúde que tem de educar (para prevenir a doença) e acompanhar milhares de utentes, quando os recursos humanos que tem só permitem que o faça nalgumas centenas. Isso é levar profissionais de saúde ao esgotamento total. Da mesma forma que não se pode exigir rapidez no atendimento nos serviços de urgência se os mesmos tiverem a afluência do triplo ou quadruplo do que estão dimensionados para receber.

E antes que alguns leitores (alguns, permitam-me a franqueza, “velhos dos Restelo”) digam frases como “este país é uma vergonha”, olhem primeiro para o espelho. Porque é muito bonito ir uma vez por ano ao centro de saúde e dizer “isto é uma vergonha, quase sem médicos” sem pensar que, em parte, a culpa é do próprio utente. Pensem neste exemplo: os caros leitores têm um café no vosso bairro, mas como preferem ir, tal como os vossos vizinhos, a outro lado, o café começa por não ter lucros para ter funcionários, até que eventualmente tem de fechar. Agora pensem num gestor, sentado na Direcção Geral de Saúde ou no Ministério (ou onde quer que a decisão seja tomada), ao ler nos relatórios o número de utentes que frequentaram o centro de saúde. O que acha que qualquer gestor (que necessite de racionalizar parcos recursos) vai pensar? Nos, vamos supor, 8 médicos e 15 enfermeiros que seriam necessários para cobrir o número de habitantes da sua área de influência ou nos, supondo novamente, 3 médicos e 6 enfermeiros que chegam perfeitamente para a média de utentes que o centro de saúde recebe? Com certeza entendem o que quero dizer.

Em conclusão, creio que isto parte de um esforço conjunto: do Ministério para dotar as unidades de saúde, em especial os centros de saúde, do número maior de recursos humanos e da mentalização das pessoas de que devem fazer visitas regulares ao seu médico e enfermeiro de família, como forma de prevenção da doença. São esses os profissionais que o aconselham e acompanham, de forma a que não tenha, em situações normais, necessidade de recorrer às urgências hospitalares. E as urgências servem, como o próprio nome indica, para situações agudas e pontuais. Se tem, por exemplo, uma gripe, deve pensar “tenho de ir ao centro de saúde” e não “tenho de ir às urgências”. Até porque nas urgências a probabilidade de apanhar um vírus enquanto espera para ser atendido é potencialmente superior. É ir ao serviço de urgência para curar uma doença e sai com outra.
Quando a população começar a entender como funciona o sistema e os serviços do mesmo estiverem dotados dos meios e recursos suficientes, o SNS será mais eficiente. E aí sim fará sentido colocar objectivos nos serviços, de forma a manterem (e, sempre que possível, aumentarem) a produtividade e eficiência.

 

Crónica de João Cerveira
Este autor escreve em português, logo não adoptou o novo (des)acordo ortográfico de 1990