Os arrumadores de carros. E eu! – João Nogueira

Tenho algumas virtudes. Sou, sobretudo, um cidadão honesto. Sou mesmo. Palavra de honra!

Também tenho muitas lacunas. A maior é a dicção.

Atenção: articulo bem as palavras, é raro trocar os “bês” pelos “vês” e tenho um sotaque neutro. Aliás, cá, em Rio Tinto, a malta tem toda o melhor sotaque de Portugal Continental.

De qualquer forma, tenho uma palavra tabu. Chama-se “não”. É o meu pequeno preconceito. Eu não sei dizer “não”. Nunca o incluo. Segrego-o sempre do resto do vocabulário. É um monossílabo com muitas sílabas, com muitos ziguezagues e que faz dobrar a língua.

Vai daí, sou coleccionador. Não de selos nem de aguças. Sou coleccionador de  amigos arrumadores de carros.

Da parte oriental à parte ocidental do Porto, conheço-os a todos. Mas até aqui tudo bem. O pior é que, da parte ocidental à parte oriental do Porto, eles também me conhecem. Todos.

Tenho, claro, um melhor amigo dentro dos arrumadores de carros. É o Domingos. Dou-lhe um euro por dia. Quero acreditar que ele vai mesmo comprar leite, xarope para a expectoração e meio quilo de pêra-rocha. Gosto dele. E ele de mim! Os nossos olhos não mentem.

A semana passada, ao sair do café, sucedeu o seguinte. Dois pontos.

O Domingos, quando me viu, disse ” Doutor, você é que me pode ajudar. Afinal, somos amigos. Tenho aqui o talão do euromilhões. Ganhei oito euros e tal, mas só os posso levantar amanhã. Podia dar-me o dinheiro e eu dava-lhe o talão. Você sabe que eu tenho estima e consideração por si.

Disse-lhe, com os dois pés atrás, que só tinha cinco euros.

Ele disse que não fazia mal. Que um conto de reis já era bem bom.

No dia seguinte, depois comprar a Penthouse e um pacote de sugus, lembrei-me do talão. Tinha, de facto, os oito euros e tal. A ironia deste disparate é que fiquei a dever três euros ao arrumador. Um caloteiro de primeira.

Quando vi o Domingos, disse-lhe que tínhamos de fazer contas. Ele disse para eu guardar os três euros. A seguir disse para eu não o gastar todo.

Posso não ser o indivíduo mais bonito da minha zona geográfica, mas possuo estatuto junto dessa tribo urbana que são os arrumadores de carros.
Tive, ontem, o retorno de anos e anos a facultar euros, cêntimos e sapatilhas aos arrumadores da Praça Velasquez. 
Estava muito feliz, o dia estava a correr-me bem e as minhas tensões tinham baixado de 18-13 para 18- 12,7.

Para festejar a descida da tensão, eu, hipertenso, fui levantar dinheiro para comprar rissóis, chamuças,  batatas fritas, bolinhos de bacalhau, Chester Cheetos de presunto e empadas de chouriço.
Quando o papelinho saiu da máquina, dei de caras com um extracto bancário diminuído fisicamente. Trata-se de um extracto bancário meigo, mas que tem sido repetidamente sodomizado e estava, naturalmente, abalado!

Entretanto, um senhor, que tinha um cheiro semelhante à fossa do meu falecido tio Bino, abordou-me. Disse-me o seguinte:

– Ó mano, não tens uns trocos?

Disse-lhe que sim, logo. Fiquei nostálgico com o cheiro dele. Afinal lembrava-me a fossa do meu falecido tio Bino e eu sou muito ligado à família.

A seguir, o indivíduo aproximou-se cada vez mais e as saudades do Tio Bino foram passando. O Tio Bino, afinal, até nem era um exemplo de cidadão.

Depois disse-me que precisava de 100 euros para comprar umas coisas.
Disse-lhe para não se preocupar. Dinheiro não lhe dava, mas ia com ele ao Pingo Doce e comprava-lhe um champô, um sabão, dezasseis pastas de dentes anti tártaro e restantes doenças da boca, cotonetes, fita dentária, um Old Spice, um corta-unhas e um piaçaba.

Entretanto, quatro arrumadores meus conhecidos, correram para me acudir. Pelos vistos, estava prestes a ser roubado.
Um dos arrumadores que me auxiliou, que é fantástico a roubar auto-rádios – há quem diga que é o melhor -, disse-me para não dar letra a tudo o que é malta que anda a pedir, porque anda aí muita gatunagem.

Nisto dos arrumadores, eu e o meu pai pensamos de forma diferente.

Gosto muito meu pai. Talvez por ser meu pai, não sei! É um indivíduo honesto, simpático e joga bem à sueca, mesmo quando não tem trunfos. Gosto mesmo dele.

Quando eu era pequenino e trovejava lá fora, metia-se na minha cama e dizia-me que aquilo já passava. Eu dizia-lhe que ele não estava a perceber: era Jesus que estava a ralhar. Ele dizia que ele é que era o meu pai e que Jesus fosse ao ralhar ao filho dele, porque lá em casa mandava ele. Gosto muito do meu pai que, uma vez, todo contente, deu-me umas luvas de guarda-redes. Ao desembrulhar, disse: “Pai, espero que não sejam “keeper” porque essas são uma merda!”

Eram keeper!

Ficou com olhos de carneirinho mal morto e eu, para emendar, disse “Pai, não precisas de ficar assim. Antes esta merda que nada!”

Gosto muito do meu pai, que me pôs a aprender inglês quando eu mal sabia falar português. Gosto dele por ser um romântico. Conheceu a minha mãe na Conservatória do Registo Civil, onde as certidões de óbito faziam de gôndolas de Veneza. Gosto do meu pai, que me obrigava a chamar Sr. Joaquim ao meu primeiro treinador, quando toda a gente lhe chamava Quim. Ou nabo!

Gosto muito do meu pai, que é pai da Ana! Que é linda. Como a mãe.

O meu pai diz que eu sou um lorpa com os arrumadores. Diz que eles ganham mais do que eu.

Noutro dia fomos almoçar a Leça. Ele foi no carro dele e eu no meu. Que está em nome dele! Estacionei primeiro que ele e o arrumador veio ter logo comigo. Dei-lhe um euro, obviamente. Cinquenta cêntimos por palavra. Ele tinha dito “Está bom!”, portanto achei que era merecido.

A seguir foi ter com o meu pai. Deu-lhe vinte e sete cêntimos. O arrumador disse-lhe, com a mão aberta, que era pouco. O meu pai mandou-o copular e tirou-lhe os vinte e sete cêntimos. Eu, claro, fui pedir desculpa ao arrumador e disse-lhe que todos temos dias maus. Ah, e dei-lhe outro euro!

Outro arrumador que está no meu coração é o Zé Fernando. O que lhe sobra em lata, falta-lhe em molares, incisivos e caninos. Mantém os sisos, contudo.

É solícito. O mês passado deixei o portátil no carro e ele disse-me, com tom paternal, que não podia fazer aquilo, porque ali há muitos arrumadores.

O Zé Fernando sabe que eu sou professor. Dei-lhe uma revista com uma marmanjona na capa, antes de entrar no carro. Ele devolveu-ma. Estranhei. O Zé Fernando tem todo o ar de quem aprecia marmanjonas.

Disse-me que não sabia ler. Com os olhos tristes!

Pediu-me para o ensinar. Só não lhe dei um abraço porque não calhou.

Durante uns tempos ensinei-o a juntar as letras. Foi um aluno dedicado, embora, no início, aquilo lhe fizesse alguma confusão.

Perguntava-lhe como se lia um “rê” e um “a” e ele respondia tó. Ou zi. Perguntava-lhe como se lia um “tê” e um “u” e ele dizia mé. Mas foi só ao início.

Hoje, o Zé Fernando lê. Aos soluços. Mas lê.

 
JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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