Os Outros Heterónimos – Amílcar Monteiro

Todos sabemos que Fernando Pessoa tinha heterónimos. Através deles, foram escritas algumas das mais belas obras da língua portuguesa. De entre todos eles, os mais conhecidos são sem sombra de dúvidas Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Alberto Caeiro. No entanto, Fernando Pessoa possuía muitos outros heterónimos, menos conhecidos do público em geral, mas que não deixam por isso de ter o seu valor. Apresento aqui de seguida:

Clarinha

O heterónimo Clarinha era descrito como uma menina de sete anos, nascida em Lisboa, que gostava muito de flores e de desenhar. De certa forma, simboliza a inocência e a pureza, a herança clássica da literatura naive.Embora grande parte da sua obra tenha consistido na repetição das várias letras do alfabeto – quando estava a aprender a ler e a escrever – Clarinha escreveu algumas das mais belas poesias  no estilo descritivo e observacional que a caracterizava. Exemplo disso é esta quadra retirada do poema “O que fiz no Verão”.

No verão fui a casa do meu avô Robalo

Plantei uma árvore e andei a cavalo.

Cheirei flores e vi uma vaquinha

Era muito bonita e muito branquinha

Ivo Vieira

Ivo Vieira era descrito como um cabeleireiro bem sucedido das Caldas da Raínha. De todos, Ivo era o único heterónimo homossexual. Apesar da sua obra ser repleta de referências fálicas, o traço mais característico do seu trabalho são as tentativas recorrentes de seduzir Pessoa, como na quadra apresentada de seguida:

Nandinho, seu escritor magricelas e atraente

Adoro a forma viril como mexes na caneta

Podes não gostar de mim mas tem uma coisa em mente

Sou eu que estou presente quando bates à punheta”

Com o passar do tempo, após uma séria de desilusões com a existência, mudou de sexo e ficou conhecido como Ivone. Nessa altura, o conteúdo da sua escrita mudou, centrando-se fundamentalmente na temática da decoração, sendo mesmo considerado por muitos o Pai/Mãe da disciplina hoje conhecida como design de interiores.

Afonso Rodrigues

Heterónimo cego, surdo e mudo. Estranhamente, nunca se encontrou nenhum trabalho realizado por ele.

 

Shan Jhing Zu

Continua a existir controvérsia e uma discussão acesa sobre se Shan Jhing Zu é, tecnicamente, um heterónimo. Isto porque ele era um demónio chinês milenar que, por vezes, possuía Pessoa e se expressava em mandarim. É talvez o seu heterónimo menos compreendido. Aqui fica um excerto da sua obra:

好奇害死猫

如果你正在读这

明天你会死

除非你做一个愚蠢的舞蹈

讨厌谷歌翻

Nélson Borges

Originário dos subúrbios de Lisboa, o heterónimo Nélson Borges apresentava um estilo próprio nunca antes visto na língua portuguesa, que consistia na escrita repetitiva de um pseudónimo – aquilo que Pessoa denominou como “tagnas paredes de vários edifícios da capital. Apesar de ter sido pioneiro neste tipo de escrita, a sua obra é ainda hoje criticada por muitos, que acusam este heterónimo de falta de conteúdo. Em baixo, fica a sua obra mais conseguida, que escreveu na fachada da Estação Central de Lisboa e que valeu a Pessoa uma avultada multa por vandalismo:

PEZOA 23

Érica Carina

Érica representava a lascívia e a devassidão do universo feminino. Descrita como uma mulher atraente, sensual e ninfomaníaca, a sua escrita era bastante peculiar, consistindo apenas em escrever a sua morada e um convite à fornicação em guardanapos, que depois entregava aos outros heterónimos. Na verdade, Érica era uma rameira que Pessoa criou apenas para satisfazer as necessidades sexuais dos seus heterónimos masculinos. Exceptuando as de Ivo.

Rua da Madalena, nº11. Quero que me cubras como o boi cobre a vaca.

Aurélio dos Anjos

Não existem dúvidas que Aurélio dos Anjos foi o mais completo heterónimo de Fernando Pessoa. Aurélio nasceu em Póvoa de Santo Adrião, a 12 de Junho de 1897 às 13 horas e 55 minutos. Do signo Gémeos com ascendente em Carneiro e com uma quadratura entre Vénus e Neptuno, Aurélio viveu quase toda a sua vida na casa do seu tio Alberto, pois o seu pai e a sua mãe faleceram num acidente ferroviário quando tinha apenas 5 anos. Tirou o curso de Medicina Veterinária e começou a exercer logo de seguida no Jardim Zoológico de Lisboa. Aos 27 anos casou com Madalena Queiroz, com a qual teve dois filhos, Pedro e Cláudia. Aurélio dos Anjos calçava o 39,5 e era intolerante à lactose. Preferia mulheres ruivas, embora não fosse muito adepto das sardentas. Tinha o tique de mexer repetidamente o braço esquerdo, muito devido ao desconforto causado por um quisto sebáceo que cedo lhe apareceu debaixo do sovaco. Era um homem mais de cães do que de gatos e nada o deixava tão feliz como enfardar um prato de bacalhau à minhota. Faleceu aos 43 anos de ataque cardíaco, num dia meio enevoado, depois de ter comprado uma dúzia de pastéis de nata e de ter ido ao barbeiro fazer um corte à tigela.

Infelizmente, Pessoa dedicou-se tão intensamente a desenvolver a história e características de Aurélio dos Anjos, que nunca conseguiu arranjar tempo para escrever poesia ou prosa sob o nome deste heterónimo.

Crónica de Amílcar Monteiro
O Idiota da Aldeia
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