Os serões da aldeia – Maria Matias

Tenho ainda na memória os serões da minha infância! Eram na aldeia, e na aldeia o inverno é mais inverno e até as noites são mais noite que na cidade. À medida que o sol, quando o havia, ia desaparecendo no horizonte, os campos transformavam-se em grandes manchas negras e as árvores e os arbustos desenhavam entre si sombras que pareciam abater-se sobre os telhados que um dia tinham sido avermelhados e que agora apresentavam um ar escurecido, pelo musgo que crescia nas telhas e aumentava inverno após inverno.

Era nesta altura em que a noite descia , e o sol se escondia por entre o cume dos pinheiros que as tarefas do campo acabavam e todos recolhiam a casa. Anoitecia cedo e os serões não raro, prolongavam-se pela noite dentro.
Lá fora, nem vivalma! Apenas se ouvia ao longe, aqui e ali um ou outro cão a ladrar, pressentindo talvez alguém mais afoite, que andaria ainda pelos carreiros que iam dar à aldeia. A estrada já havia chegado é certo, mas no inverno transformava-se num mar de lama, só possível de atravessar de galochas, ou botins como nós lhes chamava-mos.
Mas lá na nossa casa essa era a melhor hora do dia!

Lá fora já se fazia sentir o frio húmido, que na madrugada se transformaria no manto branco de geada, que cobriria os campos até onde a vista alcançava. Era portanto hora de recolher a casa!
Na cozinha, o chão era de cimento, e as paredes já haviam sido brancas, embora todos os anos fossem caiadas, pois o fumo que vinha da lareira teimava em dar-lhes aquele tom ocre. A lareira, embora fosse cedo, já estava acesa. No lume, alimentado por duas ou três cavacas, rachadas ao anoitecer para o efeito, também já fervilhava a sopa numa panela, enegrecida pelo uso.

No ar pairava um odor adocicado de acendalhas, de caruma e de lenha ardida,
Á medida que entravamos para a grande cozinha, íamos passando perto do fogo, onde aquecíamos as mãos e por vezes o rosto, que ficava afogueado, nem sempre se sabendo se do calor da lareira, se do frio que se apanhara lá fora! O estômago, esse ainda ia ter de esperar que os feijões da sopa ficassem cozidos, para serem servidos numa grande terrina. Depois da sopa feita, os tições e as brasas da lareira eram retiradas com uma pá e depositados na braseira, que não era mais do que um alguidar de esmalte já muito antigo, e que continha ainda a cinza da noite anterior. Depois, era levada para um canto da cozinha onde jantávamos. Primeiro era servido o pai que tinha andado a trabalhar e só depois se serviam os outros pratos, geralmente começando pelo mais novo. A última a sentar-se era a mãe. Depois de servir o meu pai e ajudar os mais pequenos, também ela se sentava à frente do seu prato de sopa de feijão com couves, tudo da nossa safra, não sem antes ouvir as reclamações dos mais novos e ás vezes dos mais velhos, acerca das couves, que acabavam por comer, entre ralhos e ameaças de ficarem com fome.

Mas pior, pior, era lá para Abril, na altura das favas. Por esses dias, dia sim dia não, estas apareciam à mesa, ora cozidas, ora aferventadas, com uma posta de bacalhau, ou então de carapau, que havia sido comprado na praça das Caldas na segunda feira anterior, e conservado em salmoura para não se estragar. Essa era a época que todos temíamos!
Nenhum de nós gostava destes vegetais, que de dentro do prato, verdes e mal cozidos, ameaçavam transformar-se na principal refeição pelo menos durante um mês.
Mas hoje olho para trás e consigo que a lembrança destes e d’outros serões mate a saudade que o tempo deixou ficar em mim…!

Crónica de Maria Matias
No limiar da….rutura!