Os Sobreviventes – Transportes Públicos

Vamos na lagarta de Alcântara para o Cais do Sodré, eu, o meu filho mais velho, e a namorada dele. Está uma destas manhãs lindas de sol de Inverno com que a Natureza nos tem privilegiado ultimamente, fria e luminosa na sua cintilação sobre o rio e sobre todos os estaleiros de variadíssimas matérias que lhe foram crescendo na margem. É já perto da Almanave que o senhor sentado à minha frente, magro e seco e de rabo de cavalo absolutamente grisalho, barbas crescidas e olhar intenso, se inclina para a frente e confirma, com um sotaque de geografia indecifrável, se eu sou mesmo a Clara Pinto Correia. É que, nesse caso, ele, o Fernando, artesão, é meu amigo do Facebook.
As redes sociais operam estes milagres em Transportes Públicos. Para a juventude sentada ao meu lado, o que acaba de acontecer é banal. Eu acho transcendente. E mais fico deslumbrada quando o artesão me estende um papel dobrado, dentro de um envelope com todo o ar de já ter visto melhores dias.
Toma. Era para a minha Mãe, que não consegue entender-se com a internet. Mas eu faço outro print para ela. Aceita esta dádiva. E passa a palavra.
Na página impressa vinha um texto intitulado LOS SOBREVIVIENTES, da autoria de alguém que se chama Federico Alvarez del Toro e que eu não faço ideia de quem é. Mas quase tenho lágrimas nos olhos com o que leio. Quero subscrever tudo. E agora, antes de mais nada, quero partilhar convosco.
“Os sobreviventes partilham uma sensibilidade parecida. É uma geração órfã de Anjos e Demónios. Os sobreviventes são calados, emociona-os falarem da década dourada, e ruboriza-os, porque vêm de uma guerra ideológica que deixou atrás de si mortos e feridos. Escutam na intimidade um arsenal de música, que os ajuda a sobre-elevar o mundo material. Lêem, e encontram sempre as palavras exactas de que a sua alma necessita para passar esse dia. Os seus encontros humanos são intensíssimos e profundos. Se tens um sobrevivente por aliado, essa é uma amizade que durará para sempre. São bons para partilhar a solidão existencial e para negociar a morte. Podes ligar-lhes nas madrugadas para lhes contares das tuas penas, da pobreza ou das injustiças. Também possuem um humor negro brilhante e são excelentes para se rirem de tudo. Sabem que a pobreza e a riqueza são relativas. Que tudo é uma farsa. E detectam logo a burla das representações teatrais políticas e das aparências. Os sobreviventes da cultura são adolescentes eternos, meninos assombrados, guerreiros incansáveis. É por isso que é difícil prever a sua idade com exactidão. São jovens maduros com almas antiquíssimas. Homens e mulheres na metade da vida, a quem não falta nada embora sintam que perderam tudo, que vivem numa espécie de orfandade cósmica. Andam quase sempre sozinhos, têm o olhar penetrante, sabem ser intelectualmente soberbos e interiormente livres. Têm uma capacidade de análise aguda. Vêem a sociedade como ela é, vivem dentro dela e às vezes não, como se pertencessem a outra ordem das coisas. Os sobreviventes criaram o seu próprio universo moral. As regras das massas não regem a sua vida, nem se guiam por modas, tendências ou costumes. Transgridem horários e normas, são imprevisíveis. Podem partilhar o seu jantar com reis ou com indigentes e nisso serem igualmente felizes. Os sobreviventes têm um sorriso bonito, são agridoces. Vulneráveis para o afecto e tântricos na intimidade, não têm pressa de acabar de amar. A vida passa-lhes ao lado e faz-lhes deslizar lágrimas sobre a sua pele impermeável, dura e tatuada de cicatrizes. Os sobreviventes que viveram a contra-cultura são desadaptados. Disfuncionais na vida e funcionais na arte. Os sobreviventes da música da idade do ouro amam o café e as conversas irreverentes. Vivem sem mais expectativa que não a do quotidiano; e, por isso, são insubstituíveis.”
Como poderia o Fernando conhecer-me assim tão bem?
Então, provavelmente porque este homem mais velho que eu conhece muito bem a sua própria Mãe.
Um dia, eu própria poderei transmitir este legado fascinante aos meus filhos.

Crónica de Clara Pinto Correia
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