Prioridade no atendimento: a ética precisa de lei?

A questão da prioridade no atendimento é das polémicas sociais mais recentes da atualidade portuguesa. Mas do que estamos a falar, em concreto? De um direito legislado que abrange uma população minoritária e que, em contrapartida, problematiza deveres a cumprir por uma sociedade.

A primeira questão que se coloca é: estaremos social/eticamente aptos? Sendo mais concreta, a questão basilar que se põe é se será necessário a elaboração de um decreto-lei para que as pessoas, em sociedade, tenham a capacidade de agir civicamente. De facto, a sociedade, em geral, tende a valorizar a lei e a desvalorizar-se a si mesma. Não há, portanto, um meio termo que faça refletir sobre “nós somos o resultado das nossas ações”.

Na verdade, é mais fácil estarmos numa fila de supermercado, prestes a ser atendidos, mas com uma pessoa portadora de uma incapacidade atrás de nós e ignorá-la ao invés de termos o discernimento de lhe ceder a vez. Outra situação muito comum é, também, aquela de se ceder lugar ou não, em transportes públicos, a uma pessoa com algum tipo de debilidade. Porquê? Porque “eu estava primeiro/eu cheguei primeiro”.

Trata-se de uma questão de comodidade, egocentrismo e, atrevo-me a dizer, egoísmo. Em prol do nosso próprio bem-estar, conseguimos a proeza de negligenciarmos, vezes sem conta, o nosso sentido ético. A ética constrói-se na relação com os outros, mas, essencialmente, fazendo uma introspetiva a nós mesmos, colocando-nos no lugar daqueles que descuramos: se fosse eu a estar numa situação debilitante, gostaria de ser tratado da forma como trato os outros? Infelizmente, não se pensa no outro. Somos nós que importamos e estamos acima de tudo e de todos. Por esta razão, graças à nossa incapacidade de agirmos de acordo com o bom senso, torna-se necessário a existência de uma lei para pôr um “travão” à completa ausência de ética que teima em pairar na nossa sociedade.

Na verdade, as pessoas tendem a queixar-se da burocracia e tudo o que é burocrático, é aborrecido. Todavia, o que é certo é que sem esta aborrecida burocracia, não somos nada enquanto indivíduos. Ou, então, somos tudo, mas apenas dentro do nosso mundo. Assim, foi preciso a instituição do decreto-lei n.º 58/2016, de 29 de agosto, que explana no artigo 1 “O presente decreto-lei institui a obrigatoriedade de prestar atendimento prioritário às pessoas com deficiência ou incapacidade, pessoas idosas, grávidas e pessoas acompanhadas de crianças de colo, para todas as entidades públicas e privadas que prestem atendimento presencial ao público.”, para termos consciência que existem pessoas com necessidades especiais e que, por isso, devem prioritariamente ser atendidas no que concerne a postos de atendimento ao público, na sociedade.

Pergunto-me: Será que uma legislação consegue mudar, assim tanto, mentalidades? Não haverá sempre alguém que continuará a não saber fazer uma simples introspeção ou, simplesmente, ter a capacidade de ser empático (colocar-se no lugar do outro)? Consigo perceber perfeitamente porque, por vezes, é mais fácil olhar para o outro do que olharmos para nós mesmos. Assim sendo, não se torna necessário, mas sim prioritário.

Não se trata de ser apenas incorreto perante os outros, mas sim perante nós mesmos. Faz parte de nós sentirmo-nos bem com as nossas atitudes. Até que ponto me iria sentir bem por não ajudar uma pessoa invisual a atravessar uma passadeira com sinais luminosos? Iria sentir-me bem por não dar prioridade de passagem a uma pessoa idosa na entrada para um elevador?

Haverá sempre quem questione, quem profira palavras desconfortáveis. Haverá sempre, porque as pessoas não sabem viver em sociedade. Não sou eu que estou errada. Não tenho como objetivo fazer julgamentos precipitados. Simplesmente é uma constatação de factos facilmente observáveis no nosso quotidiano.

Imagine, caro leitor, a seguinte situação: a pessoa que lhe está a escrever é portadora de uma incapacidade. Nessa perspetiva, estaria a consciencializá-lo para uma questão tão simples como “eu tenho prioridade, eu tenho direitos”, mas que muitas vezes me são negados. No entanto, “as atitudes ficam para quem as pratica”.

Numa questão ética, mais do que educacional, e ainda dentro da perspetiva apresentada anteriormente, daria sempre prioridade ao idoso ou ceder-lhe-ia um lugar num transporte público, opondo-me à minha comodidade.
Queremos uma sociedade melhor, aliás exigi-mo-la! Mas o primeiro passo está na capacidade de pensar e agir de cada um de nós. Saber viver em sociedade requer muito mais do que, simplesmente, saber o que a lei nos diz para fazer. Antes de ser legislado continuava a ser igualmente cívico dar prioridade, prestar auxilio. Mas agora a lei diz, agora é para cumprir.

Vejamos quantos!