Quando o amor é longe – João Nogueira

Quando o amor é longe, um indivíduo faz contas. Conheço um que conta os dias, as noites, os minutos. Os centésimos não porque só teve Matemática até ao décimo ano, o lorpa. Conta, não só porque é obsessivo e porque tem tiques, mas sobretudo porque, no sangue, além de hemoglobinas, corre-lhe, em sprints, a vontade de chegar à gare do Sul para dar um abraço a quem lhe mostrou o Norte. O lorpa sai do Porto às sextas-feiras. Sempre que sai, para sul, faltam-lhe trezentos quilómetros para chegar ao “Norte”.

O lorpa sou eu e, às sextas-feiras, é dia de ir para Lisboa. É sempre Sexta-feira Santa.

As viagens são de comboio. São sempre iguais! Sempre do lado janela, com meia-dúzia de jornais e revistas de economia e política, como a Penthouse, porque gosto de andar informado.
A viagem começa antes de começar. Começa com o Domingos, o meu amigo arrumador de carros. Gosto dele. Sem condescendência, atenção!
Há quinze dias, porém, pus em causa a idoneidade dele, que, mesmo quando há 77 lugares disponíveis faz questão de arrumar a minha viatura de categoria B.
Já somos tu cá, tu lá. Já sabe que sou professor. Diz que tenho sorte, que é um trabalho limpinho. É bom homem. Mas também é um homem que tem uma particularidade: faz anos dez vezes ao ano. Já fez 48, 52 e na passada terça-feira completou 47. Não tenho porque duvidar dele.
Já me disse que esteve na guerra colonial. Era furriel e lutava contra “os do Hitler”. Mas também já me disse que, na altura de ir para a guerra, fingiu ser homossexual e passou à reserva. Mas não tenho porque duvidar dele.
Já me disse, inclusive, que foi piloto de helicópteros no Malawi, ali ao pé de Moçambique. Também já me disse que nem por milhão e meio de euros era capaz de andar de avião. Mas não tenho porque duvidar dele.
Há quinze dias, pediu-me quatro euros e setenta e cinco cêntimos. Disse que mos dava na sexta-feira seguinte. Com as mãos em concha, jurou pela alminha dos lá tem. Pensei que quatro euros e setenta e cinco cêntimos são quatrocentos e tal escudos e que quatrocentos e tal escudos, no meu tempo, era muito dinheiro. Fiz questão de lhe dizer isso. O Domingos disse-me baixinho, ao ouvido, para ninguém ouvir:
– Professor, não quero pôr em causa a sua competência a ensinar a canalha, mas quatro euros e setenta e cinco cêntimos não são quatrocentos paus. São novecentos e cinquenta “mérreis”.
Disse-lhe que só tinha dito aquilo para ver se ele estava atento. A seguir, dei-lhe o dinheiro
Sexta-feira, mal viu o meu cabelo erecto a chegar, deitou o SG Filtro para o chão, correu 300 metros, deu-me o dinheiro e disse muito obrigado.
Caiu-me bem. E pouco me interessa que para a semana me diga que já deu uns beijinhos à Claudia Schiffer.

Viajo para Lisboa com o coração carregado de ilusões e com o farnel carregado de chamuças e panados de peru. Estou de dieta!
Já são mais de duzentas viagens. Conheço de cor as estações e apeadeiros. Em Portos/Lisboa e Lisboas/Porto ninguém me papa. Quer dizer, não é bem assim, porque uma vez, antes Dela, tive um romance na carruagem 21. Não é que tenha durado muito, mas marcou-me. Durou do Pombal até ao Entroncamento, onde o namorado dela a esperava com um ramo de malmequeres. O que mais me chateia nas viagens são aqueles indivíduos que adormecem assim que entram e só acordam quando chegam. Acho isso uma falta de solidariedade entre camaradas passageiros. Uma vez apanhei o mesmo indivíduo dorminhoco duas semanas seguidas. Entrava em Lisboa e saía em Coimbra. Um minuto depois de entrar começava a babar-se. Dois minutos depois, punha a cabeça dele no meu ombro, babando-o. Quando chegávamos a Santarém, abraçava-se a mim e chamava-me Gisela.
Numa dessas viagens, uma velhinha que ia à nossa frente, deu-me os parabéns, que fazíamos um belo par e que, graças a Deus, os preconceitos estavam a desaparecer. Outra, que estava ao lado dela, disse que se mijava a rir com estas modernices. Fui desagradável. Disse-lhe: “Não, a senhora mija-se porque tem incontinência”. Ela levou a mal e mudou de lugar. Entretanto mijou-se!
Quanto ao dorminhoco, esqueceu-se de acordar em Coimbra e eu, triunfante, acordei-o quando chegámos ao Porto. Disse-me “Merda, Gisela! Não sabias ter avisado?”
São assim as viagens até Ela. Quando lá chego, ponho sempre chicla de limão e cheirinho no pescoço. Chego com taquicardia, com o coração a fazer pum pum pum. Por mais simpáticos que sejam os viajantes da minha viagem, eu gosto é Dela, que vai ao meu lado. A rir-se para mim.
Sempre que vou ter com Ela, às sextas-feiras, levo-lhe gomas das gordinhas. Quando me vou embora Dela é sempre domingo à noite! Fico órfão Dela, com cieiro e olhos de carneirinho mal morto. Mas, na bagagem, que tem que vir leve, trago sempre o mundo.
Até sexta!

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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