O FMI concebeu o novo manual sobre como destruir um país em 365 dias. Viu, decerto, que os portugueses não se “agacharam” perante as investidas da austeridade, e decidiu que é altura de Portugal seguir o caminho da Grécia.
Os efeitos do mero anúncio da existência de tal relatório já se fizeram sentir: os juros da dívida portuguesa aumentaram pela primeira vez em meses.
Na semana passada Portugal recebeu não a Bíblia, pelo menos não a de Passos Coelho, mas talvez os novos “mandamentos” do FMI, entre os quais se incluem, pois claro, cortar na despesa social e despedir pessoas que trabalham para o estado. Então, qual é a novidade?
Às vezes parece que não temos governo em Portugal. A primeira coisa que nos entra pela casa adentro, aquando do início do noticiário, é a notícia do mega-relatório de 77 páginas do FMI, que nos lembra a todos porque é que este governo PSD-CDS e este memorando da Troika têm de ser detidos, quanto antes.
Um secretário de estado, qual consultor de empresa, faz anunciar e elogiar um relatório que é tudo menos apreciável, pois é um autêntica “lista negra” que contém os alvos a abater: primeiro os funcionários públicos, depois os reformados, por fim o país inteiro.
Passos Coelho aprecia o relatório, mas diz que “não é a Bíblia do Governo”. Talvez sejam somente os novos “mandamentos”. Com Passos Coelho, o que se diz à hora do almoço já não se diz à hora do jantar…
Cinco “especialistas” do FMI traçam a receita menos indicada para um país que está à “beira de um ataque de nervos”: fazer ainda mais cortes, despedir ainda mais pessoas, enfim, destruir o que ainda resta do estado social.
E, atenção, a maior parte destas medidas são para aplicar já em 2014, diz o FMI.
Análise ao relatório do FMI
O relatório foi elaborado por Gerd Schwartz, vice-director do Departamento de Assuntos fiscais do FMI; Paulo Lopes, filho de José Silva Lopes, ex-ministro de governo PS, tendo-se especializado, ao que parece, em gastos sociais; Carlos Mulas Granados, especialista em assuntos económicos e autor de parte do programa eleitoral de Zapatero às eleições espanholas de 2004; Platon Tinios, economista grego, foi conselheiro do governo grego em 2003 (o mesmo executivo que, ao que parece, pode ter “maquilhado” as contas públicas gregas para poder entrar na Zona Euro); e ainda, Emily Sinnott, uma “ilustre desconhecida” (alguém sabe quem é?…). Nesta lista de “experts” só falta mesmo o “grande especialista”, Dr. Artur Baptista da Silva…ah! mas este senhor pertencia à ONU, (de acordo com o mesmo, e negado pela mesma entidade, repare-se) portanto não pode ser…
Dado prévio: as análises foram baseadas em dados altamente desactualizados (datados, muitos deles, de 2006, 2007, 2008), e contêm análises enviesadas, plenas de intencionalidade, digamos, parecendo haver propósitos particulares a atingir com a feitura deste relatório. Encomendado ou não, pelo governo PSD-CDS ou por outras entidades ou pessoas, é um relatório mais do que omisso, faltoso, grosseiramente amador, por vezes.
O relatório do FMI começa por enaltecer as virtudes do chamado “estado social”, mas apresenta logo um primeiro erro: “Governos grandes costumam estar ligados a um baixo crescimento”. Inverdade, pois o governo da Alemanha, talvez o único país a crescer consistentemente nos últimos anos, tem 16 ministros, enquanto Portugal só tem 11 ministros. Se o objectivo do FMI é reduzir ainda mais o já reduzido governo português, talvez pretenda centralizar ainda mais o poder do executivo no nosso país. Ou, será que estes “especialistas” do FMI detêm parcos conhecimentos acerca da realidade portuguesa? É o que parece…
Emprego
A sugestão de reduzir os salários dos funcionários públicos entre 3 e 7 por cento, por forma a poupar 325 a 760 milhões de euros por ano é pornográfica. Isso significaria estender o “tapete vermelho” da pobreza a milhares de trabalhadores. Cortar ainda mais nas verbas destinadas ao pagamento de horas extraordinárias (algures entre 20 a 30%, poupando 200 a 300 milhões de euros) seria sugerir uma escravização dos trabalhadores do sector do estado. Aumentar de 35 para 40 horas o horário semanal de trabalho na administração pública é reduzir, por si só, a remuneração-base dos trabalhadores; juntem-se-lhes os professores colocados que, com a “ligeireza” sugerida pelos “fantásticos especialistas” do FMI, poderiam também aumentar o seu horário lectivo, gerando poupança ao estado na ordem dos 300 milhões de euros.
Já agora, por que não este atrevimento destes “senhores de colarinho” não ir ainda mais longe? Despeçam-se 20% dos trabalhadores, para o estado poupar até 2700 milhões de euros! Rescisões amigáveis…mobilidade especial…toda e qualquer modalidade que consiga “empurrar” para fora do aparelho estatal milhares e milhares de trabalhadores é aceite!
Pensões
Depois de tantas reduções nas pensões de milhões de aposentados em Portugal, os “especialistas do FMI” acham que ainda não é suficiente. Então, porque não reduzir 10% todas as pensões? Assim, gerar-se-iam poupanças na ordem dos 2250 milhões de euros, diz ainda o mesmo relatório. E quanto perderia mais o consumo, em termos gerais?
Mas o FMI não sugere reduzir de imediato todas as reformas. Diz que “reduzir em 15% as reformas acima do escalão mínimo traria poupanças ao estado na ordem dos 1500 milhões de euros anuais”.
Parece que 40% dos gastos em pensões se deve a pagar as pensões mais altas, que são 20% do total de reformados em Portugal.
E, sugere ainda o painel de “especialistas” do FMI: porque não apenas atribuir 13º e 14º mês aquando de crescimento nominal da economia acima de 3%? Esta proposta não pode ser séria, pois é de um descaramento total, para além de uma óbvia injustiça, pois não se pode conceder um direito como se de uma regalia (ou “bónus”, como é referido no relatório) se tratasse.
Para poupar até 600 milhões de euros, aumentar a idade da reforma dos 65 para os 66 anos de idade.
Outros benefícios sociais
Para o FMI, os desempregados terão de se dedicar à mendicidade…pois aqueles que receberem subsídio de desemprego, assim que chegarem ao décimo mês de prestação de subsídio de desemprego, verão o valor do mesmo descer para 419 euros, recebam eles o que receberem…isto é algo nunca visto, é uma ideia aberrante, é tratar as pessoas como lixo, como objectos descartáveis…Não há qualquer medida realista de criação de emprego, mas cortem-se os apoios sociais…nem emprego, nem apoio…
Reduzir ou mesmo acabar com abonos de família para jovens acima dos 15 anos de idade…vale tudo!
Despesas com Educação
Este relatório prossegue com a sua panóplia de “aberrações”. Ideia-chave: fazer mais com menos recursos. Pois é, “fazer omeletes sem ovos”…
Aqui, o alvo a abater são os professores. Fala-se de 160 mil professores, num universo de 230 mil funcionários no sector público da educação. Esses professores, diz ainda o relatório, são uma “classe relativamente privilegiada face ao resto da sociedade”.
Encerrar escolas é uma boa opção para o governo, assume o relatório. Outra coisa não seria de esperar. E porque não, já em 2014, despedir 14 mil pessoas, entre professores, auxiliares e administrativos escolares? Poupar-se-iam 300 milhões de euros em salários!…Fala-se ainda, no mesmo relatório, de ser possível despedir 50 mil professores…é verdadeiramente impressionante o descaramento de determinadas ideias contidas nesta “obscenidade” chamada relatório do FMI.
Os “especialistas” em economia, que redigiram este relatório do FMI, prosseguiram a sua aventura pelo mundo da educação, matéria sobre a qual se dedicaram a “lançar palpites”, qual Totoloto. Então, acharam por bem sugerir um (ainda) maior aumento nas propinas do ensino superior. Talvez assim a educação passe a ser censitária, isto é, quem tiver dinheiro, poderá pagar estudos aos seus filhos, já aqueles que não o puderem fazer, não verão os seus filhos estudar…(nem trabalhar para pagar os seus estudos, entenda-se…já que não existe emprego para a maioria dos jovens em Portugal…).
Os senhores do FMI desconhecem o significado de “igualdade de oportunidades”. Desconhecem, por completo, a obrigação moral de um estado social, no que toca à oferta de ensino que deve dar aos seus jovens. O FMI é, com efeito, um fundo internacional de dinheiro e não mais do que isso, pois não tem sequer pedagogos ou mesmo outros especialistas em educação para efectuar estudos qualitativos sobre essa área.
Saúde
A “trapaça” continua. Porque não contratar mais enfermeiros, para equilibrar o rácio entre médicos e enfermeiros? Diz o FMI, agora um fundo especialista em saúde, que “há tarefas que os enfermeiros podem desempenhar tão bem quanto os médicos”. E assim diz o FMI, “especialista” em saúde tal como em educação, administração interna ou defesa, emprego, etc, ou seja, “especialista” em nada, nem sequer no seu métier: economia.
Pagar menos por mais horas extraordinárias a todos os agentes prestadores de cuidados de saúde, aumentar para 40 euros uma ida às urgências de um hospital…o rol de “barbaridades” que é escrita, no relatório do FMI, é por demais grosseiro.
Defesa e segurança pública
Para o FMI é imperativo terminar com os benefícios do sector da defesa, pois a classe profissional dos militares “tem demasiadas regalias”. Para o FMI, o combate ao crime tem tido bons resultados, melhores do que no resto da Europa até, mas há polícias a mais, diz o organismo internacional. Ridículo, haver bom combate ao crime a par de existirem polícias a mais.
Já disseram aqueles que percebem realmente do assunto que com estas medidas se coloca em causa a segurança nacional…
A segurança nacional, atrevo-me a dizer, já está posta em causa com a crescente perda de soberania do nosso país…com os atentados à nossa Constituição…
Só existe uma solução para a Troika e para este Governo: Rua!
Saudações!
É, realmente, inquietante o conteúdo do relatório do FMI. Apesar de determinados analistas referirem que a noção do mesmo é, acima de tudo, política – isto é, oferecer as piores medidas possíveis para o governo poder tomar medidas menos más – o conteúdo não deixa de ser inquietante de tão pavoroso que é.
Achei bastante interessantes algumas das observações do Marcelo Rebelo de Sousa desta semana. No sentido em que referiu, como você bem disse, que o Estado Social que temos em Portugal é resultado único da história do país. E apesar de se poder afirmar que tem de ser modificado, foi, em todo o caso, a cola que manteve o país coeso ao longo das diversas crises que viveu (queda do Estado Novo, Descolonização, os Anos 80, etc). E já se fala que, neste momento são os reformados, com as suas pensões, que ainda dão alguma coesão ao país, incrivelmente sendo eles quem, em muitos casos, tem dinheiro em casa, para filhos netos, etc.
Acabar com o Estado Social moderno, ou pelo menos com os pilares que mantêm o país intacto seria catastrófico.
A noção de que as forças de segurança têm demasiadas regalias e deveriam abdicar das mesmas é absurda. Quem mantém a ordem e a soberania do país? Não se sabe que este é um país com uma história recente de revoltas militares? Sabemos que, em grande medida, a crise da dívida soberana é um scam para uns poucos ganharem muitos biliões, mas ao menos que o façam com alguma competência, se me faço entender.
Mais essencial é falta de noção pelo contrato social. Se as pessoas sentirem que, de facto, aqueles em quem colocaram a confiança de gerir o território não se interessam pelos que nele vivem os resultados serão catastróficos. Hoje foram disparados tiros contra o primeiro ministro grego e é uma questão de tempo até o mesmo suceder aqui.
Creio que não estou a ser tremendista ao dizer isto, mas o facto é que, mesmo que outra opção não houvesse para os governantes na gestão desta crise, eles continuam a mostrar-se ineptos profissionalmente e incapazes de vender as suas iniciativas ao povo (IE: nem mentir sabem). Voltado a utilizar as palavras de Dr. Marcelo: “O país está esquizofrénico.”
Evidentemente que o que vivemos todos os dias e está mais próximo de nós tem a soberana prioridade neste tipo de colunas, mas gostava de chamar a atenção para duas questões internacionais que sigo com algum interesse e que dos quais gostaria de saber a sua erudita opinião (quiçá nas próximas semanas se a situação politica nacional não se deteriorar mais ainda.)
Primeiro a crise do Mali, em que a França atacou praticamente no mesmo dia em que dizia que estava a considerar a opção. Se bem que tal ataque “surpresa” tenha causado estragos consideráveis (se bem que com a perda de um helicóptero Gazelle e piloto), o facto é que não impediu o avanço general dos jihadistas.Mais interessante é o background político da decisão – França a utilizar a iniciativa, longe de inédita, para se manter como membro activo e influente do Norte de África (e lembremos o assalto mal sucedido na Somália), troca de segurança militar por favores políticos e económicos – petróleo – e, segundo alguns analistas, gerar mais propaganda em redor do caça Rafale, no qual o governo francês investiu biliões de Euros, mas cujos contratos custam a vir (na Índia geram-se vozes em relação à incapacidade de os franceses manterem as contrapartidas que prometeram, assim como contratos que escapam por entre os dedos na Península Arábica para com o rival europeu Typhoon).
Segundo, o aumentar da linguagem agressiva no Mar da China. Caças chineses e japoneses brincam ao gato e ao rato sobre Seikaku, com os japoneses a treinarem operações de assalto aeronaval. É evidente que se estão a fazer grandes esforços para ver quem é o maior menino no recreio, e mesmo a Índia, com interesses opostos à RPC lá vai trocando fogo ligeiro com os vizinhos da Kachemira paquistanesa. Em linhas gerais, não acredito que um conflito armado se dê nos próximos tempos (apesar de erros individuais e políticos poderem tornar a situação altamente imprevisível), mas é evidente que a Ásia é um dos grandes focos da geopolítica mundial neste momento, e os olhos dos maiores analistas estão lá colocados, para se saber o que irá derramar para o resto do mundo.
Em linhas gerais estes são os meus pensamentos da semana, e creio que já me arrastei demasiado apesar de não ter entrado em detalhes.
Em todo o caso, parabéns pela crónica e por ter colocado de modo tão simples e honesto a aberração que foi o relatório do FMI. Que aqueles criminosos do PSD-CDS se vão embora, realmente.
Francisco Duarte
Boa noite Francisco,
Deixe-me, antes de mais, agradecer as suas simpáticas palavras.
Este relatório do FMI já foi muito criticado, e com toda a justiça, por diversos agentes políticos que perceberam o “amadorismo” inerente à feitura desse documento, pleno de omissões, falhas na recolha da informação, entre outros lapsos graves quanto ao método científico empregue na elaboração do relatório.
Creio que o painel do FMI não pretendia apresentar as piores opções possíveis, para o governo “fazer bonito”. Acho que existe uma guerrilha de bastidores entre staffs de FMI e staffs da UE, que de resto já veio defender Portugal, pela voz de Van Rompuy e de Durão Barroso. Esta guerrilha também tem a ver com pressões exercidas por agências de rating sobre os “especialistas” do FMI residentes em Washington. E creio estar tudo dito.
Sobre as questões que coloca, devo dizer que acerca do Mali, partilho muito do que o Francisco diz. A França pretende continuar a desempenhar um papel importante na zona do norte de África, aliás, tem de defender os seus (muitos) interesses localizados naquela zona. Repare que se os rebeldes avançarem mais poderão criar ainda mais graves desequilíbrios nos países limítrofes, como a Costa do Marfim, a braços com cisões internas palacianas. Parece que a estratégia dos rebeldes jihadistas passa por controlar as fronteiras a sul do Mali, para impedir movimentações de bens e pessoas, por um lado, por outro para conseguir cercar as forças leais ao regime maliano, algo ainda não atingido, pois demorará muito tempo e será muito difícil de acontecer, por força da presença de tropas francesas, por terra e pelo ar. Por ar, , como refere no seu comentário, se vai fazendo publicidade aos aviões de fabrico francês mas pouco vendáveis, pois a concorrência na indústria militar nesse aspecto é muito forte, e os franceses escolheram – erradamente quanto a mim, não se juntar aos seus colegas europeus.
Em relação aos atritos entre China e Japão, quanto a mim não passarão disso mesmo. A indústria militar gera milhões e milhões de euros anualmente, e quaisquer movimentações militares chinesas e japonesas continuam a dinamizar esse negócio, dão a impressão de que os países em causa são grandes impérios “do passado”, para além de ajudarem a ocultar e subalternizar episódios comprometedores da vida política doméstica. Alguns analistas crêem que a China poderá mudar o seu tipo de regime, mas só daqui a vinte anos. Por outro lado, a Ásia é o maior mercado mundial, e tem um enorme potencial ainda por explorar.
Saudações cordiais, e grato uma vez mais pelo seu comentário,
Nuno Araújo