Transportes Públicos – Para você também

Faz um frio tramado na paragem do 28, ali mesmo diante do Lidl de Xabregas, numa paragem sem abrigos pousada nesta zona baixa por onde a humidade do rio entra a matar nos dias mais ríspidos do Inverno. Ainda somos alguns aqui parados. Como acontece frequentemente nestas alturas, trocamos entre nós os olhares solidários que ainda podemos arrancar ao desconforto – mas o espírito natalício, esse, de facto, se o temos, está muito bem trancado cá dentro; e ali, naquele paradeiro, tudo de passa como se ninguém o sentisse. Aqui onde nós vivemos, a toda a volta, por todas as ruas dos extremos mais descurados da Zona Oriental, não se acendeu este ano uma única luz, não brilhou uma decoração mais festiva numa única montra. A Rosalina, do café, tem feito sonhos, é verdade – as coisas estão más, mas isso não quer dizer que a gente não se esforce. Só que a margem para o esforço está curta. Ninguém transporta presentes. Não há roupagens alusivas. O Lidl, que se vê daqui, é famoso por não ser dado a essas mariquices, por forma a permitir-nos todo o ano o acesso àquelas suas promoções sempre tão inacreditáveis. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Era só mesmo o que faltava. Um pouco lá mais para a frente ao longo da mesma rua, no Centro Comercial de Xabregas que costumava ser a jóia da coroa ali do sítio, mais de metade das lojas nem esperou pelo Natal para desistir e fechar portas. Os que estão aqui, a bater com os pés contra o passeio no frio cortante do sol que desce depressa, sabem disso muito bem.
O 28 vai para a Portela, mas eu vou sair em Moscavide. Ainda há dois dias lá estive. Por isso, sei. Sei que não verei pessoas felizes às compras. Sei que as decorações de Natal nas lojas serão mínimas, poupadas, com aquele brio de quem mesmo assim não desiste mas aquela reserva de quem não sabe se vai ou não conseguir ainda ali estar para o ano que vem. Sinos, trenós, estrelas, arcos que pisquem de um lado ao outro das ruas – não, esse peditório esqueçam. Já démos. A festa acabou. Agora faz-se na mesma, mas é quase sem dar nas vistas. E com muito poucos sorrisos. Vem do rio mais uma rajada de vento cortante. Vai escurecendo.
Finalmente, desenha-se ao longe a silhueta inconfundível do 28. O único factor de estranheza que por momentos baralha o pessoal enregelado da paragem e levanta palpites e gargalhadas do centro da intempérie é que, à medida que a lagarta amarela se aproxima, se nota com cada vez mais clareza que o letreiro vem a piscar. Será um odioso FORA DE SERVIÇO? Mas não, os dizeres mudam. Será que alterna PORTELA com EXPRESSO, o que quer dizer que vai passar por ali como se não nos visse? Não, nada disso. É Natal. A Carris lembrou-se de nós. A paragem inteira abafa risos e comentários. O letreiro do 28 vem mas é a alternar PORTELA com BOAS FESTAS. Uma modernice deste ano. Pronto, que seja parca a festa. Mas que quem pode se lembre dela. Já é qualquer coisa. Pensar que os outros pensam em nós faz-nos sempre sentir melhor. A mim, pelo menos, rasgou-me logo um sorriso animado de um lado ao outro da cara.
E foi ainda dentro desse sorriso que, num único gesto, entrei no autocarro, validei o Sete Colinas, me virei para o condutor, e deixei sair, com toda a alegria, um grande “então boas festas para si também!”
O miúdo que ia ao volante não podia ter muito mais de vinte anos. Embora fossem quase cinco e meia da tarde e a noite estivesse a descer depressa, continuava de óculos escuros. Olhou para mim com os dois lábios comprimidos um contra o outro com tanta força que se tornaram brancos por uma fracção de segundo. Por um momento tão rápido que mais ninguém deu por ele, matou-me com o olhar.
Depois olhou para a esquerda, certificou-se de que não vinha ninguém, e arrancou de prego a fundo.

Crónica de Clara Pinto Correia
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