Um trapalhão, um velhinho de dedo do meio no ar e um hotel de cinco estrelas. – João Nogueira

Tenho um ror de defeitos. Não é para me gabar, mas eu sou trapalhão. Não sei mudar uma lâmpada, não faço ideia como é que se passa uma camisa a ferro e nunca consegui estrelar um ovo em condições. Nunca! A gema nunca ficou amarelinha.

Quando o carro está com problemas, digo sempre que o problema é das velas, que estão encharcadas. Ontem, por exemplo, fui meter gasolina. Estava na reserva, como de costume. Paguei primeiro. Treze euros e setenta e sete cêntimos. Entretanto, meti-me no carro e fui à minha vida. A luz da reserva continuou ligada. Não me pareceu anormal e segui a todo o gás, na faixa da esquerda, a vinte quilómetros por hora. Não é que me orgulhe, mas sou um indivíduo dado a velocidades. Cheguei a fazer um Porto-Algarve em dezassete horas, mas jurei para nunca mais. Tenho amor à vida!  Meia-dúzia de quilómetros depois de ter pago a gasolina, a viatura parou. Foi morrendo aos poucos, solavanco após solavanco. Parecia-me evidente que as convulsões do carro tinham a ver com as velas encharcadas. Mas não. O problema estava na gasolina. Naquela que tinha pago. Mas que não tinha metido.

 Sou trapalhão. Mas possuo capacidade de argumentação. Sou bom a misturar advérbios de modo e adjectivos. Aliás, quem estiver desatento fica com a ideia que eu sou óptimo a falar.  Tirei a carta de condução tarde. Contudo, com muito sucesso. Passei à quinta tentativa! Ainda hoje sinto que isso suscita inveja nos meus amigos mais chegados. Mas não lhes guardo rancor! Só não passei nas vezes anteriores porque o examinador foi incompetente. Numa das vezes estive para chumbar por não parar num vermelho. Aleguei daltonismo. O homem deu-me mais uma oportunidade. Mas disse que era a última. Agradeci, claro, apesar de me parecer que ele estava a ser picuinhas. A seguir, dei sinal para a esquerda e fui para a direita. Aleguei, obviamente, problemas de lateralidade. O senhor reprovou-me! Disse que eu não fazia ideia do que era conduzir um automóvel. No banco de trás, a senhora de oitenta e dois anos que tinha feito exame antes de mim, e que tinha passado, ria-se às gargalhadas. A seguir chamou-me nabo.

 Lembrei-me dela a semana passada. A propósito de amor. Ou das trinta mil formas em que ele se consubstancia. Na rotunda dos Produtos Estrela, no Porto, aconteceu amor.

Na melhor rotunda do mundo para se ter um acidente como deve ser, uma octogenária, agarrada ao volante como se estivesse agarrada à vida e com a ponta do nariz  a tocar no vidro da frente,  fez um disparate. Os automobilistas, educados e com respeito pelos mais velhos, como eu, começaram a buzinar e a dizer umas palavras que agora não interessam ao assunto. Um pandemónio! O senhor que ia ao lado da senhora, na casa dos noventa e provavelmente o marido, abriu o vidro e exibiu um dedo. Bem alto e durante segundos. A dada altura, o dedo era um pêndulo, a andar de um lado para o outro. Sempre esticado. Não me pareceu que fosse o polegar!

Depois fez festinhas na permanente branca da mulher e foram à vida deles.

O pandemónio acabou ali. Esmagado pela cumplicidade dos velhinhos. O respeitinho é bonito.

 Sábado. Fim-de-semana. Passei-o num hotel de cinco estrelas do Porto. Apesar de pobre! Não me estigmatizem por este capricho! Ando a poupar desde 1997!

Como vi que à porta do hotel só estavam estacionadas viaturas que não me agradavam – Porshes, BMW´s e pechisbeques desses – deixei o meu carro de quase vinte anos a um quilómetro, na medida em que não gosto muito de ostentar aquilo que tenho. Quando lá cheguei, veio o homem das malas e, prontamente, apesar da meia tonelada de penduricalhos, de roupa e de sapatos que a minha moça levou, disse ao senhor para deixar estar, que eu ia e vinha sete vezes até estar tudo no quarto.  Ele ainda perguntou se eu estava no hotel para descansar ou para fazer aeróbica, mas  assim evitei dar-lhe quarenta cêntimos de gorjeta, que é a tarifa normal neste tipo de hotel.

A seguir, tomei um café e a senhora disse que eram quatro euros. Laparoto como sou, disse-lhe “ A senhora está a brincar, mas qualquer dia vamos mesmo dar oitocentos paus por um café”. Ela disse que não estava a brincar. Eu disse um palavrão. Começava por “f” ! Ela disse que aquele tipo de interjeições não eram admitidas no hotel. Pedi desculpa, disse que não se voltava a repetir e optei por outro tipo de interjeição. Uma que começava por “c”.

Depois, a senhora da recepção perguntou-me se me podia oferecer um cálice de Porto. Disse-lhe, com cara de trovão, que se um café custava quatro euros, um cálice de Porto devia custar para aí uma dúzia de contos de rei. Ela disse que não, que era oferta. Bebi de golada, sem aquelas pieguices de andar com o copo à roda e de cheirar primeiro só para dizer que percebo. Até porque, na realidade, não percebo mesmo.

 Cheguei ao quarto e o frigorífico estava cheio de coisas boas. Como é natural, comi um chocolate, um queque e bebi uma Coca-Cola. Pensei que, por aquilo que tinha pago, ter  um frigorífico cheio era o mínimo que podiam fazer. Entretanto, depois da lauta refeição, a minha moça descobriu um preçário. Fiquei a saber que tinha de pagar vinte e quatro euros pelo que tinha comido. Disse um palavrão. Que começa por “f”. Apesar de se tratar de uma interjeição que não é admitida ali.
Senti falta de uma pensão de meia estrela, com casa de banho partilhada, em que tenho de esperar que o velhinho acabe de fazer cocó.

 Há quem acredite que Deus se manifesta de muitas formas. Não sei. Não tenho fé. Quem me dera ter. Ia dormir melhor. Quem acredita dorme melhor . Quem finge que acredita dorme como eu. Mal! É aborrecido pensar que vou ser uma pedra. Tinha melhores planos para mim do que transformar-me num bocado de basalto. Ou de xisto! Tantos anos a estudar que vão para o maneta!

Acredito que é o amor que se manifesta de muitas formas. O amor não se circunscreve. Nem a nacionalidades, nem a credos, nem a nada. O amor também pode ser um velhinho. De dedo do meio no ar.

Por mais estranho que pareça.

 

JoãoNogueiraLogoCrónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua

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