Vida de Cão – Clara Pinto Correia

Chamem a este fenómeno o que quiserem – a verdade é que os cães estão a bombar no metro de Lisboa. Depois de muitos engenhos para pedir esmola nas carruagens em movimento de onde ninguém pode sair – bater a bengala a compasso com um tubo, exibir toda a espécie de chagas, expor os membros cortados ou atrofiados de nascença, pura e simplesmente repetir a ladainha do tenham a bondade de auxiliar o ceguinho, e por aí fora – os pedintes, como todos os outros portugueses, viram-se constrangidos a puxar pela criatividade. E foi então que apareceram os cães.

Os primeiros eram chiwawas como deve ser, pretos por cima e pardos por baixo, com a linha de  resolução das cores a definir-se perto dos olhos. Vinham empoleirados no ombro de pessoas de origem desconhecida que mais ou menos tocavam acordeão, sem nunca se mexerem, com o fundo de uma garrafa de água cortada por cima nos dentes, a servir de cesto para se deitar a esmola. Os utentes do metro até achavam graça à performance, sobretudo enquanto era rara e se manifestava exclusivamente na linha vermelha.

Com o passar das semanas, e depois dos meses, os cãezinhos da esmola começaram a saltitar para outras linhas e a perder a raça. Basicamente, bastava que fossem pequeninos e dóceis, bem treinados para a sua função de sacristão, auxiliar do sacerdote que tocava e esmolava. A qualidade do que saía do acordeão, que nunca tinha sido grande coisa, desceu abismalmente dos barqueiros do Volga para o bacalhau quer alho, até já parecer pouco mais do que o que parecia o atirei o pau ao gato, e por fim coisíssima nenhuma – apenas umas notas alinhavadas, para que o pessoal sentado nos bancos ou agarrado às braçadeiras percebesse que aquilo era música. Os cães já não tinham o dorso preto. Na sua esmagadora maioria, eram todos castanhos e está a andar. Houve uma vez em que, passada a barreira do metro da Baixa-Chiado, vi dois destes homens caminhando lado a lado, cada um deles com o seu cãozinho no ombro. Pareciam descontraídos, em passo de passeio, muito provavelmente discutindo entre ambos a linha a atacar a seguir para atacar os otários. A verdade é que os fundos de garrafa de água que os bichinhos seguram na boca, geralmente presa por um arco metálico, têm sempre lá dentro uma boa maquia de moedas. Lisboa. A capital de tudo, incluindo do improviso. Adoro a minha cidade.

O problema é que, depois disto, os cães do metro se foram transformando numa verdadeira arma de arremesso. Vai toda a gente a esperar pacientemente pelo seu destino na linha verde, e logo no Cais do Sodré entra um bacano mal encarado, mal lavado e mal vestido, que trata logo de ir sentar-se no chão em frente à porta de entrada. Tem voz grossa. Tivémos que ouvi-lo a bradar sobre sermos umas bestas e ele não tem pena de nós, que somos uns burgueses feitos carneiros e ele n tem medo de nós, que somos a escumalha e ele não tem consideração por nós. Ninguém olha. Ninguém comenta. O único interesse deste homem para os passageiros, a verdadeira performance desse intruso, o centro de todas as atenções, são os cães grandes que trouxe consigo e que entretanto também se sentaram no chão à sua volta. Três huskies brancos. Querem melhor?

Crónica de Clara Pinto Correia
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