A candidata ao desemprego

Em pleno período pós eleições primárias no PS e a anteceder o pré-eleitoral para eleger os representantes do povo na Assembleia da República, haverá lá entrevista de tema mais atual do que uma de emprego, neste caso a de uma senhora candidata à vaga de rececionista num hotel de cinco estrelas, que não fosse andar em contenção de despesas por causa da alegada crise, melhor seria que contratasse duas pessoas no lugar daquela para fazer face ao acréscimo de trabalho que passou a ter desde que Lisboa entrou na rota europeia dos navios de cruzeiro.

“Bom dia”, disse ela apressadamente, sabendo que se tinha atrasado, ao mesmo tempo que empurrava, depois de bater, uma porta que estava encostada e espreitava para dentro da sala onde aguardava, para falar com ela, um sujeito carrancudo que ainda não estava convencido de que queria tê-la por empregada.

CANDIDATA – Posso entrar? – Murmurou.

SUJEITO – Faça o favor de entrar! (Pigarreia) Está a ver essa cadeira? – Aponta.

CANDIDATA – Claro. Só não a via se estivesse no seu lugar.

SUJEITO – Então por quê?! (Ajeita desajeitadamente o par de óculos que tem na cara)

CANDIDATA – Porque raramente, de onde estão, os chefes que tenho conhecido perdem tempo a olhar para o lugar onde se sentam os seus subordinados, a menos que seja para repreende-los por qualquer motivo, na maior parte das vezes razão.

A decoração da sala era minimalista. Ao centro havia uma mesa de reuniões oval, em redor da qual havia imensas cadeiras, tantas quantas as candidatas que ela temia que aparecessem por causa do anúncio reduzindo as probabilidades de vir a ser contratada.

SUJEITO – Pois, mas nesta empresa a gerência salvaguarda e protege os seus ativos humanos, garantindo o acesso de todos a condições dignas de poderem exercer a sua atividade profissional.

CANDIDATA – Nesse caso, não sei se é aqui o meu lugar. Preferia uma onde as pessoas falassem uma língua que eu entendesse. Se era para me sentir como uma estrangeira, ia para casa da minha prima Elvira que está em França e, sempre que me falamos, me diz que posso dispor da casa dela como se fosse minha. Bem sei que tinha que aturá-la mais às manias dela, e também não entenderia nada do que as pessoas me dissessem na rua, mas em contrapartida ganhava um belíssimo ordenado como ela a trabalhar nas limpezas.

SUJEIRO – Quer dizer que já tem uma ideia do ordenado que pretende auferir?

CANDIDATA – Só o suficiente para ela continuar a pensar que é por causa de o dinheiro não chegar para comprar as passagens de avião que não vou visitá-la, e aos meus sobrinhos, mais vezes.

SUJEITO – Tem experiência de trabalho como rececionista?

CANDIDATA – Pouca, mas sempre que o meu marido sai com os amigos para um daqueles jantares em que exageram na bebida e chega a casa tocado, estou habituada a ficar de plantão. Prontifico-me para fazer horas extraordinárias e fico de serviço à espera dele para lhe abrir a porta e indicar o quarto, porque aquele homem tem uma cabecinha de vento e sai sempre de casa sem chave.

SUJEITO – Mora perto?

CANDIDATA – Não sei.

SUJEITO – Não?! (Admirado)

CANDIDATA – Quando o carro do meu marido está na oficina e vamos a pé para qualquer lado, parece-me tudo tão longe … é que eu fico impaciente porque não há maneira de chegarmos!

SUJEITO – Quer dizer que é casada. Tem filhos?

CANDIDATA – Infelizmente não. O meu marido não pode ter, mas estamos a pensar em adotar.

SUJEITO – De preferência um bebé, como quase toda a gente deseja?

CANDIDATA – Não, senhor. Tanto nos faz que seja menino ou menina, mas tem que ser mais velhinho, é excelente desde que já não use fraldas.

SUJEITO – Por quê?

CANDIDATA – Dizem que aquilo que o Estado dá de abono por mês, não chega nem para, na altura das promoções, comprar um pacotão de 72 unidades, quanto mais para leite em pó e biberões.

SUJEITO – Vejo aqui, no curriculum que nos enviou, que só tem o 9º ano.

CANDIDATA – Sim, mas o meu sonho era ser professora do ensino básico.

SUJEITO – Não teve notas suficientes para entrar na Faculdade?

CANDIDATA – Lá ter tinha mas está a ver, se ainda hoje acho que é longe sairmos de casa para ir à rua tomar café sem ser de carro, imagine o que seria naquele tempo, sem nunca ter trabalhado nem ter dinheiro sequer para comprar uma bicicleta, mudar-me de armas e bagagens da Beira interior para Lisboa.

SUJEITO – Mas o esforço talvez viesse a compensar. Hoje talvez estivesse colocada numa escola e não precisaria de responder a um anúncio para rececionista.

CANDIDATA – Está enganado. E colocada onde? Arriscar-me a que, quando tivesse a minha vida organizada num sítio, me transferissem para uma escola a trezentos quilómetros de casa? Não se esqueça de que há professores que trabalham há muitos anos e ainda não conseguiram juntar dinheiro para ter um carrito nem que seja em segunda-mão. Como é que eu ia? Isso para mim seria muuuuiiiito, muuuuuiiiiiito longe.

SUJEITO – É então natural do interior do país?

CANDIDATA – Sim, senhor. De uma aldeiazita dos arredores de uma vila dos arrabaldes da cidade de Viseu.

SUJEITO – E gosta da vida no campo?

CANDIDATA – Sobretudo nas férias de Verão. Só o meu marido é que detesta embora tenha sempre vontade de nos enfiarmos lá.

SUJEITO – Explique lá isso! Então ele não gosta e quer ir?!

CANDIDATA – Mesmo com bom tempo enfia-se em casa a ver televisão ou nos cafés a beber copos com os amigos emigrantes que só vê de ano a ano. Se gostasse do lugar, saíamos mais vezes e eu mostrava-lhe como aquela região é lindíssima. Tem rios, cascatas, florestas … no fundo, gosta de ir mas prefere viver na cidade.

SUJEITO – Ele é natural da sua aldeia? Brincavam juntos?

CANDIDATA – Nada disso! Só o conheci quando atingi a maioridade e vim servir para casa de uma senhora em Lisboa, que, não desfazendo de V. Exa., era uma joia de pessoa. Mas garanto-lhe que saberia reconhecê-lo em qualquer lado, desde pequenina.

SUJEITO (Irritado) – Minha senhora, esgota-me a paciência! Não percebo patavina do que diz! Afinal, conheceu-o em adulta ou quando era criança?

CANDIDATA – É muito simples. (Sorri com ar sonhador) Se olhasse para ele percebia. É tão bonito! Os olhos, o nariz, a boca … era como se já o tivesse visto porque, quando nos conhecemos, ele era igualzinho ao que eu imaginava como seria o príncipe que, nas histórias de encantar que a minha mãe me contava à noite para dormir, casava com uma princesa a quem fazia feliz.

SUJEITO – Bem, (levanta-se e estende-lhe a mão) creio que já sei o suficiente de si e podemos dar por concluída a nossa entrevista. Muito obrigado por ter vindo.

CANDIDATA – (Animada) Quer dizer que vou ser contratada?

SUJEITO – Lamento mas não. Lembrei-me agora de que o lugar afinal já está preenchido. Até outro dia! (Indica-lhe a saída)

CANDIDATA – Quero o senhor dizer que estivemos os dois a perder tempo?!

SUJEITO – Os dois, não, apenas eu. A senhora não perdeu tempo nenhum, está desempregada.

CANDIDATA – Engana-se uma vez mais, caro senhor! Se tivesse dito isso logo de início, não tinha eu estado aqui a tentar agradar-lhe e dizia-lhe logo que o achava antipático, insensível e muito, mas mesmo muito mal-educado!

Dizendo isto, ela vira-lhe as costas e sai.