Gosto de ti. Reticências.
Vives em mim. Em todos os meus andares. Da cave ao sótão do meu eu, lá estás tu e a tua fila indiana de dentes brancos. Todos certinhos.Todos direitinhos.
Estou longe de ti, só hoje, mas sinto necessidade de te escrever. Assim, com esta letra à primária, bem redondinha. É mais gorda que o caracter do teclado, tem a anca mais larga, mas tem melhor coração. E tu gostas mais.
Escolheste-me. Da multidão de rapazes de nariz pequenino e de olhos verde-azeitona, tu, sua morcona, lançaste o dedo indicador na minha direcção. Olhei para o lado direito. Depois para o esquerdo. Olhei para cima. A seguir para baixo. Olhei para ti, com o indicador a apontar para mim. A medo, como num filme mudo, disse: EU?
Salvaste-me. A única coisa que eu tinha de original era ter lateralidade cruzada. Escrevia com a direita e chutava com o esquerdo. Achaste piada. Não discuto gostos. Grato, lateralidade cruzada.
Lembro-me de ti na escola.
Lembro-me do milésimo de segundo em que a minha vida ficou circunscrita a ti. Rasgaste em trinta e sete pedacinhos o exame de Filosofia, dois minutos depois de começar. Levantaste-te, juntaste os pedacinhos, agrafaste-os e deste-os, a sorrir, ao professor. Sempre a sorrir, muito educada, mandaste o senhor abaixo de Braga. Antes de saíres, e ainda a sorrir, disseste-lhe para ir perguntar o que é o amor numa perspectiva epistemológica, à mãezinha dele. Um a um, levantámo-nos e batemos-te palmas.
O amor não se pergunta. Ele fala por ele. Mas sem cordas vocais. O amor está nos olhos, nunca nas palavras. Elas só atrapalham, disseste-me.
Disse-te que não.
Disseste-me que sim.
-E não…
– E sim…
-Desculpa, Cris, tu não percebes patavina de amor. Zero! Aliás, percebes tanto de amor como eu percebo de columbofilia islandesa.
(Riste-te.)
– Cris, se o amor está só nos olhos, porque é que tremo sempre que estou ao pé de ti? Que eu saiba, não tremo com a íris nem com a córnea. E porque é que não consigo parar com este tique na sobrancelha? Dá-lhe liberdade, deixa-o vir por aí abaixo. Dá-lhe asas. Não lhe construas uma jaula nos olhos.
(Coraste.)
– Cris, sabes uma coisa?
( a olhar para o chão)
– Sei muitas.
– O olhar de que falas pode ser um não olhar?
(Ris, envergonhada.Continuas a olhar para o chão)
– João, vamos comer pão com geleia?
Esse diálogo, que por um triz não foi monólogo, marcou a tua vida. Não a minha, porque eu já sabia de que farinha eras feita.
Sabes, amor, aos setenta a vida não é como aos vinte. Sim, é pior. Sem eufemismos. Ninguém gosta de envelhecer. A vida é um estupor. Um coito interrompido. Faz cara feia a orgasmos de gritos de boca aberta e ao suor que cai em cataratas do Niagara, por nós abaixo. A vida mete os dedos na boca quando te vê dormir, agarrada a mim. Seja na cama. Seja à beira da lareira.
A vida é virgem. Ninguém lhe pega. Há-de morrer assim, com o hímen intacto. Bem feito. Ela deu-me-te. Ela vai-me tirar-te.
Meu amor, eles sabem lá! Se soubessem, nunca diriam que primeiro vem a paixão, que dizem ser efémera – os lorpas – e depois vem o amor. Uma coisa tranquila, para aquecer os pés. Uma coisa porreira para as noites de Inverno. O Amor, para eles, pode ser substituido por botijas e carapins, vê lá tu!
Hoje, velhinhos, digo-te, muito baixinho: excitas-me tanto como no primeiro dia. Ainda mais baixinho, a sussurrar no teu ouvido encorrilhado: a tua pernoca septuagenária continua a adiar aquilo que ambos sabemos que era suposto já ter vindo há muito. Agora em mímica, porque o que vou dizer é quase quase ordinário: paixão, meu grande amor, é termos setenta anos e “darmos duas”. Pronto, já disse. Desculpa, desculpa, desculpa. Não volta a acontecer. Refiro-me, obviamente, à linguagem!
Cristãos, islâmicos, brancos, pretos, feios, bonitos, ciganos, beatas, prostitutas, freiras, ladrões, pais de santo, um apelo. Acreditem em Cristo, em Isaías, em Abraão ou em Maomé. Mas acreditem mais no amor. Eu quero lá saber que apregoem Deus , Santo Eugénio, ou que escrevam teorias sobre o caroço de Adão. Apregoem mas é o Amor. Rezem, orem, chorem, peregrinem, mas Deus é uma coisa. Sim, Deus é uma coisa, lamento.
Sou e tu, Cris. Quando estou com gripe. Dás-me beijinhos e deitas-te ao meu lado. Dizes que se eu estou doente, tu também passas a estar. Também dizes que quando eu estou contente, tu também passas a estar. É justo. É Deus.
Deus não tem nada que saber. É isto. Uma coisa que não se vê. É um arrepio. Um vento que passa. Muito frio. Que dá vontade de te abraçar com a força de mil homens.
Cris, perdão. Estou amargo. Estou azedo. Não tenho força. Não é justo. A vida é fascista. Tenho medo de morrer. Tenho medo que tu morras. Como é que vai ser quando morreres e eu não estiver lá. Ou o contrário. Chamas por mim? Chama. Que eu vou. Logo.
De xis-acto em punho, rasguei o meu peito com o teu nome. Ejaculei sangue atrás de sangue. Sangue preto, não vermelho. Não o estanquei. Jamais o estancaria, Cris.
Do meu peito já ninguém te tira.
Nem a vida.
Nem a morte.
Um amo-te sem palavras. Só olhos nos olhos. E pernas a tremer. E sobrancelhas a sobrancelhar.
Até amanhã.
Crónica de João Nogueira
Pés bem assentes na lua
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Olá, João.
Um arrepio, é o que é!
As palavras, as frases formadas, o texto como resultado.
Um arrepio!
É assim que se sente o Amor.
Também é assim que o sinto, ainda que não o sinta.
Ainda que não o sinta há algum tempo.
Mas era assim.
Um arrepio!
Já lho tinha referido?
Acho que não!
Obrigada.
Bem João,
com esta crónica fiquei engasgada… Muitos parabéns mais uma vez!!!! Não deixes de escrever nunca! Que bem que escreves O Amor, à tua maneira, mas que bem que se sente ao longo do texto. Tudo de bom para ti e para quem te faz sentir desta forma e transmitir tão boas energias a quem lê!
Bem, já sorri, já chorei, já imaginei uma Cris ruiva e um João de olhos verdes assim novitos nas traseiras da escola a comer pão com geleia. E senti tudo, a paixão, o amor, o medo de morrer. E é o que gosto no João Nogueira, sinto, sou transportada, mudo de nome e de corpo e de vida mesmo… E é tão bom! Muito obrigada, João!
Meu querido João, minha metade, meu mais que tudo, confesso que gosto de tudo o que escreves, por isso não venho aqui todas as semanas dar-te os parabéns pela forma inspirada, soberba e, em simultâneo, simples com que escreves e cativas os teus leitores.
Só espero que aos setenta, aos oitenta, aos noventa ainda possamos ser aquilo que somos hoje… Um beijinho 🙂
João – como diz o outro – “os recordes são para ser batidos”… Que grande crónica! Certamente entre as melhores de todas, até hoje. Grande abraço.
Paula Vinhais Gostaria de não estar no face agora, gostaria de cara a cara dizer duas coisas: Uma delas é um enorme palavrão, soltar um grande fo………. com muitos pontos de exclamação associados. Fo……….para quem escreve assim. Assim como a namorada diz que não vem aqui muitas x para ver o que escreves, mas que sabe muito bem como escreves, eu também não venho aqui muitas x mas desconfio que começo a confiar que tudo o q venha daí é “produto” do bom, daquele que dá uma mocada que nos deixa fora de órbita. Por isso João, parabéns, muitos parabéns!!! tinha mais qqer coisa para dizer mas ainda guardo na memória as palavras do texto que li, por isso, para aquilo que tinha para dizer em 2º lugar, um grande fo……sssss. Viva o amor, escreva sempre p.f.