Vale da Ratinha – Capítulo 1

Menina e moça. Mulher novinha. Estreada com apenas dezoito primaveras. Pouco ingénua. A recatada Leonor. De Candeias às avessas. De família. Casada com o coveiro. O imortal Diamantino. Sempre de pá na mão. A pá do enterro. E o Diamantino gosta de enterrar. Os mortos, claro.

A doce Leonor fala demasiado com o fogão. Com as mãos. E por vezes com a cafeteira. Com os dedos. Quando segura as chávenas de café da loja dos chineses. Berrantes e contraditórias à decoração da cozinha de pedra. A pobre cozinha. Pintada de fumo oriundo da lareira. Mais preta que um pedaço de carvão. Nos arredores escasseiam os cafés. E as padarias são uma ilusão.

Portugal é uma ervilha. Ou uma aldeia. Das típicas.  A interessante Vale da Ratinha. Que faz fronteira com a Coisa Alçada. Coberta de xisto. Disposta no fundo de um vale. As paisagens incríveis observadas do topo. O passado bordado de centeio. Do povo que vivia banhado no azeite. Bebia do vinho e comia do trigo. Os emigrados. Para França. E outros países. A essência de um país em clara decadência.

O venerado Diamantino sentiu-se obrigado a sair do país. Está na Alemanha a trabalhar numa fábrica de salsichas. Coitado. Todos os meses envia uns trocos para a estimada esposa. E junta outros tantos.  Diz que quer comprar um Mercedes e construir uma vivenda na Ratinha. Manias dos que vão para fora. Com o Zé Nabo a substituí-lo na hora de baixar o caixão.

Saudade. O segundo nome de Leonor.  A falta que o marido lhe faz. Saudade. É uma das palavras com mais impacto na língua portuguesa. E também na música popular. Resume-se a um turbilhão de sentimentos. Alguns de perda. Outros de falta e ainda distância de amor. É uma lágrima que cai sem vontade própria. Um sorriso lembrado. E desfocado.

Uma mulher que se acha sozinha. Que conversa com o vazio dos fracos móveis despojados. Que chora cama abaixo. Que se diverte com os infortúnios da televisão a preto e branco. E que se perde na imensidão das cebolas, das batatas, das alfaces e das couves. Produtos que carrega da horta deixada de herança pelo respeitado marido. Os olhos da vizinhança acompanham-na nas aventuras dos dias corridos. Perto de uns quarenta sistemas de vigilância. Bastantes. Os que ainda não morreram. Ou que ainda não foram enterrados pelo Diamantino. Ou pelo Zé Nabo.

As noites são sempre definhadas. Murchas. E quando não há nada para exercer, inventa-se qualquer coisa. Passa com velocidade o boato de que quando o sol mergulha na escuridão, a desvanecida Leonor entrega-se aos prazeres leoninos. Que se transforma numa leoa. Desde que o marido se sombreou lá para os estrangeiros. O seu, claro está.

Os boatos são danados. São notícias que fluem publicamente. Exposições resumidas que circulam de dentes em dentes, sem precedência conhecida ou exatidão confirmada. Mexericos aborrecidos para a pobre vítima. Caviar para quem os lança.

A solidão. O vazio. A certeza de que algo precisa ser alterado. Transformado. A sensação de impotência. A acusação infundada dos vizinhos. Os parentes que não existem. Ou que não querem existir. Apenas uma avó que dorme num lar há mais de dez anos. Uma vida. E uns quantos primos espalhados pelas grandes cidades.

Os tempos são de mudança. Algo inesperado surge no Vale da Ratinha…