A problemática do vilão – Francisco Duarte

Recentemente vi-me envolvido numa discussão acerca da importância de um vilão numa boa história. Ao que parece, estava errado. Nem todas as histórias precisam de um bom vilão. Aliás, algumas nem sequer precisam de criar oposição aos protagonistas para ter algo interessante. Muitas vezes os próprios protagonistas criam todos os desafios necessários para manter a história interessante. Outras vezes o vilão pode estar lá, mas serve apenas como uma distração, um detalhe secundário para dar algum sal a uma história já de si completa. Não precisa de ser especialmente complexo ou detalhado, nem sequer precisa de ser especialmente memorável. Este é o caso, geralmente, dos desenhos animados infantis, sobretudo os mais clássicos, em que se esperava que mesmo que o tema fosse sério (como uma guerra) os vilões teriam de ser menos ameaçadores do que o esperado, para que as crianças conseguissem lidar melhor com a sua existência.

Portanto é verdade. Vilões, ou inimigos em geral, não são essenciais para contar uma boa história, nem sequer precisam de ser especialmente interessantes noutros tantos casos. O problema, contudo, surge quando o autor se dá ao trabalho de estabelecer o vilão e o que representa um modo sério. Aí é que eu creio que estes personagens requerem uma preparação mais ampla e bem definida.

Agora que definimos estes fatores, deixem-me explicar o porquê deste enquadramento. Acabou há poucas semanas a primeira época de uma nova série de animação, The Legend of Korra (TLoK), a sequela da bem-sucedida The Last Airbender, que ainda hoje continua a ser um fenómeno de culto. Creio já ter passado tempo suficiente para poder falar do final dessa série, mas tenham em conta que o que se segue contém spoilers bastante extensivos.

TLoK começou fantasticamente bem. O argumento apresentou-se como sólido e bem construído e o mundo de 70 anos depois das primeiras aventuras de Aang era interessante e visualmente intrigante, num tipo de fantasia industrial reminiscente de Full Metal Alchemist. Os heróis eram credíveis como seres humanos e havia certamente alguns linhas de argumento interessantes. Uma das coisas que mais me impressionou a mim, contudo, foi o vilão, Amon

Forte e com um discurso que ameaçava revolucionar tudo o que esperávamos saber sobre este mundo de fantasia, ameaçava reescrever as regras de como se escreve dentro do género, sobretudo no que diz respeito à animação americana. Eu esperava realmente algo grande, e algo que no fim deixasse o próprio espectador a questionar os fundamentos morais deste universo fascinante. Honestamente, o homem admitia querer tornar todos iguais e querer acabar com os poderes e mentiras dos utilizadores de magia (chamados de “benders” e ligados aos quatro elementos), num cenário que tanto se parecia com as lutas laborais do final do século XIX e que definiram o mundo que temos hoje.

Foi então com alguma ânsia que esperei pelo combate final entre a titular Korra, a Avatar que estava na Terra para trazer equilíbrio ao mundo, e Amon. Aliás, durante os curtos recontros que tiveram ao longo da série dava para suspeitar de algum plano mais extenso por parte do vilão, alguma filosofia inerente ao seu método. Chega o episódio final e… nada. Para minha surpresa tivemos uma luta genérica em que, para todos os efeitos, parecia que o vilão queria apenas dominar o mundo. Não que eu tenha problema com vilões que parecem relacionáveis e acabam por se revelarem monstros sem escrúpulos no fim. Isso pode ser bem feito. O meu problema não foi esse. O meu problema foi o potencial perdido para ter um personagem a refletir sobre as realidades e filosofias inerentes àquele mundo em que utilizadores de magia coabitam com pessoas normais e a ideologia por detrás de liderar uma revolta contra essa realidade.

No fundo esperava que o vilão nos deixasse a questionar o que pensamos saber e que o desmoronar do seu plano fosse algo que ficasse na memória. No fim, foi o processo que ficou e não o seu fim último. Para comparar com outra série de que falei antes, o Full Metal Alchemist (no seu remake de 2009) também apresentava um vilão que era, para todos os efeitos, egoísta e incapaz de compreender o sofrimento alheio, chamado Father. Mas o resultado final de todo o planeamento e manipulação de Father foi impressionante tanto visualmente como filosoficamente. Mesmo quando o seu plano falha, os sacrifícios feitos pelos protagonistas para resolverem as suas dificuldades deixam uma profunda marca no espetador, que fica a pensar no significado de tudo o que acabou de ver. É essa diferença de que estou a falar. Um fim complexo e filosoficamente desafiante para o vilão de uma história apresenta-se como algo incrivelmente satisfatório para o espetador, enquanto que resolver a situação de um modo mais cliché e simplista corre o risco de deixar as pessoas desapontadas.

Mas, evidentemente, que nesta apresentação está refletida uma opinião profundamente pessoal. Eu não acredito em bem e mal absolutos, e acredito que se abordamos um tema mais complexo e desafiante numa história (como ciência vs religião, vida e morte, preconceito, etc) então, como autores, temos o dever de levar esses temas às últimas consequências e deixar o espetador/leitor/jogador na dúvida em relação ao que pensa sobre o mundo da história e, com sorte e arte, sobre o seu próprio mundo.


Crónica de Francisco Duarte
O Antropólogo Curioso