As reações – Mara Tomé

As nossas reações ao diagnóstico assemelhavam-se ao que se passa numa montanha russa: os mesmos altos e baixos, as mesmas variações de velocidade, os mesmos medos – com a exceção de que não embarcámos nisto de livre vontade…  Depois de muito chorar e não conseguir perceber o porquê de nos atingir a nós e às piolhas, de me revoltar e continuar a não perceber os porquês, surgiu subitamente uma questão: e se a médica se tivesse enganado? Erros de diagnóstico! Sim, isso é possível! As piolhas não têm autismo porque falam coisas e são meiguinhas e são sociáveis e fazem coisas geniais (quanta ignorância a minha naquela fase…). Conheço pessoalmente alguém que teve e ainda tem comportamentos semelhantes e é adulta e faz uma vida perfeitamente normal! É isso mesmo. Vou fazer uma lista.

E fiz a lista. E mostrei à médica. E a médica olhou-me terna e docemente, de coração pesado e diz-me que não há margem para dúvidas… Que todos os sinais, todos os comportamentos delas indicam uma perturbação do espectro autista e que a pessoa em quem me baseei para fazer a tal lista também apresenta sinais semelhantes, talvez Asperger. Novo baque. Afinal não houve nenhum erro de diagnóstico e eu não tinha mais onde me agarrar.

Acho que, de uma forma mais visível ou menos visível, mais constante ou instável, eu e o marido passámos pela negação, pela adaptação e pela suposta aceitação – que eu prefiro trocar por “resignação”-. Confesso que cheguei a ter momentos de vergonha e de culpa, de depressão, de súbitos rasgos de encarar a realidade, de isolamento, de sobreproteção das piolhas, de ameaça a quem ousasse dizer o que eu pudesse interpretar como discriminatório. Alguns destes sentimentos ainda se mantêm mas, felizmente, a sensatez prevaleceu e, pouco tempo depois, estávamos na 2ª consulta de desenvolvimento já com algum conhecimento acerca do autismo na bagagem, com estratégias que tínhamos vindo a desenvolver de forma intuitiva para partilhar, com informações articuladas entre pais, educadora de infância e auxiliares do Jardim de Infância. As piolhas continuam a ser as nossas filhas e não é nem nunca será um rótulo que mudará isso. O rótulo, porém, era um mal necessário pois é única e exclusivamente através dele que se abrem as portas para terapias e apoios – educativos ou financeiros (poucos, não tenhamos ilusões). Mas um rótulo só terá o poder de categorizar ou limitar se lhe atribuirmos esse poder. Foi e continua a ser muito importante para nós encarar o autismo de forma realista.

E volvidos quase três anos, apesar de as nossas fases negação-adaptação-resignação ainda fazerem parte da nossa vida, principalmente quando notamos que as piolhas regridem em alguns aspetos (retorno de estereotipias ou birras – meltdowns), no entanto, as piores reações surgem de lados que não esperávamos: supostos amigos que se afastam, com receio, talvez, que lhes peguemos o mal ou lhes peçamos algo; familiares muito próximos que se recusam aceitar (ou resignar!) e atribuem as culpas aos pais, criticando a forma como educamos as piolhas ou como gerimos o trabalho e a família ou por estarem num infantário e não com os avós…

O autismo tem-nos ensinado muito: desde os seus termos científicos às últimas descobertas na área sem encararmos as palavras técnicas como se estivessem em língua estrangeira; desde o separar o que será um comportamento autista de um comportamento normal e saber mostrar essa diferença a quem convive com as piolhas; desde o assumir que nem tudo o que resulta com alguns autistas resulta com as piolhas; desde o destrinçar quem está verdadeiramente connosco e nos apoia de quem nos deita abaixo e continua a achar que nós é que somos loucos. E todos os dias aprendemos mais, às vezes de forma incrivelmente dolorosa. Mas essa aprendizagem também nos torna mais fortes. A nós e às nossas filhas.


Crónica de Mara Tomé
T2 para 4