Catalunha e Escócia: É tudo uma questão de liberdade de escolha

No passado dia 9 de Novembro, 2.305.290 pessoas participaram num processo de gigantescas proporções cívicas e políticas. Chamado a votar para se prenunciar sobre o futuro de uma das regiões mais ricas de Espanha, o povo catalão anuiu ao pedido do Presidente do governo Artur Mas e peregrinou às urnas de forma digna e exemplar. Digna pelo modo como os próprios cidadãos se comportaram perante a conjuntura de risco imposta pelo Governo espanhol (relembro que a realização do referendo foi considerada ilegal porque a Constituição espanhola o proíbe). Exemplar pela forma como todo o processo foi dirigido pelas instituições catalãs. Uma lição de coragem, cidadania e vontade política.

Na senda de outras reivindicações independentistas, como a do referendo escocês no Reino Unido ou a do Quebeque no Canadá, o projeto catalão apenas vem reavivar a velha premissa do Estado-nação tão admirada pelos Europeus, a de que a cada nação corresponde um Estado e a cada Estado uma nação. A ideia de pertença a um grupo com uma cultura, língua e história próprias possui um efeito psicológico sobre os indivíduos. Não o neguemos. O sentimento de pertença a tal estrutura confere por um lado segurança e certeza étnico-cultural, por outro, um enquadramento e referência civilizacional. Mas serão assim tão importantes as reivindicações nacionalistas na geopolítica do século XXI? Sim. São e sempre o serão. A Catalunha não é um caso único. Atentemos.

O ressurgimento do separatismo europeu tem dois precedentes. O primeiro deu-se em 2006 com a separação da República do Montenegro face ao Estado da Sérvia e Montenegro. Nesse mesmo ano o Parlamento montenegrino realizou um referendo que teve a aprovação popular e conduziu à independência do país. Apesar da sua pequena dimensão (pouco menos de um milhão) e da sua fragilidade económica está em negociações com a NATO e a preparar a sua entrada na UE. O segundo precedente aconteceu em 2008.O Kosovo, um pequeno país com pouco mais de 2 milhões de pessoas e que fazia parte da Sérvia, conseguiu a sua independência (embora contando o apoio dos EUA e da UE). Contudo, foram as condições económicas, mais propriamente a crise da dívida pública da zona euro em 2009, que determinaram (como sempre) a intensificação das reivindicações separatistas europeias. As situações financeiras dos respetivos países proporcionaram o seu crescimento. Apresentadas as precedências tentemos perceber agora qual a dinâmica deste movimento no território da UE.

Na União Europeia existem 37 movimentos nacionalistas representados no Parlamento Europeu pela European Free Aliance, partido político que os agrega. Destes 37 movimentos nacionalistas 6 provêm de Espanha. Andaluzia, Galiza, Catalunha, Aragão, País Basco e Canárias. Apesar da preeminência espanhola existem por toda a Europa associações regionalistas e partidos independentistas que têm ganho nos últimos anos alguma força política. Na França, a norte, a União Democrática da Bretanha luta por uma maior autonomia para uma região que foi independente do Reino de França até 1532. A sul, o Partido Occitânica formado em Toulouse em 1987, que sonha com o reconhecimento de uma comunidade que fala uma língua – occitana – e que terá surgido no século IX. Na Bélgica, a questão da Flandres e da Valónia. Em Itália, a Sardenha e o Veneto. Na Letónia, a comunidade russa. Na Grécia, os macedónios de Pirin. Na Alemanha a Lusácia e a Frísia do Norte. Enfim, toda uma panóplia de minorias com sangue na guelra. Estes são apenas alguns dos muitos exemplos que poderiam ser apresentados, todavia, existe um caso específico, já referido, que merece um maior destaque da minha parte. A Escócia.

O tema da independência da Escócia desperta sempre paixões antigas que se julgavam enterradas. Estranharia se assim não o fosse. O seu percurso histórico revela acima de tudo um enorme respeito pelas instituições vigentes. O referendo escocês realizado em setembro só veio comprovar isso mesmo. O povo escocês está de parabéns. Não só pela demonstração de uma cultura política enraizada, como pela enorme afluência às urnas, aproximadamente 85%. Também o Governo Britânico merece uma palavra de apreço pelo modo como lidou com toda a situação, nomeadamente, pela realização da campanha “Better Together” criada para persuadir a manutenção da Escócia como parte integrante do Reino Unido ao invés de virar as costas ao problema e proibir a consulta pública, acto que só prejudicaria a democracia. Este desejo de autonomia política, apesar de intrinsecamente ligado, na minha opinião, aos direitos de exploração do petróleo no Mar do Norte, inspirou sem margem para dúvidas grande parte dos movimentos independentistas que pretendem seguir um percurso idêntico respeitando os procedimentos legais e formais. Mas voltemos a nuestros hermanos.

A Catalunha é uma das nações mais antigas do mundo. Possui língua e identidade própria. É dotada de uma estrutura jurídica e política capaz de impor a sua soberania. Tanto as instituições (parte legal) como a esfera-pública (parte cívica) funcionam. No entanto, é-lhe constantemente negado um dos direitos fundamentais de qualquer democracia, o direito ao voto e a decidir o seu futuro. Coloquemos os romantismos à parte e desçamos ao cerne da questão. Afinal de contas porque não pode a Catalunha votar? Neste desígnio, o argumento “antidemocrático” e “inútil” dado pelo Presidente do Governo espanhol Mariano Rajoy não me convence. Nem a mim nem aos catalães. É verdade que a Constituição proíbe a secessão mas não proíbe que se conheça a opinião dos cidadãos relativamente a questões de relevância nacional. O caso catalão não só é um caso de relevância como de urgência nacional. Se os casos supracitados em cima puderam recorrer a procedimentos formais para aferir a vontade dos seus povos porque não pode a Catalunha fazê-lo também? Esta falta de articulação e de diálogo por parte de Rajoy só tem uma consequência política evidente, o aumento de pessoas a favor da independência. A abordagem não é adequada. O tiro da caçadeira madrilena saiu pela culatra.

A tentativa de abafar as aspirações de um povo é sempre perigosa. A História comprova-o. É preciso ouvi-lo. Os valores democráticos pelos quais os espanhóis tanto lutaram não podem continuar a ser postos em causa. A lei deve servir os cidadãos na sua universalidade e complexidade cultural, custe o que custar. O desejo catalão de um governo autónomo num quadro de uma Europa forte e integrada continuará a subsistir. Negar o problema não é solução. É simplesmente adiá-la. Nas palavras de Jean- Paul Sartre (1905-1980), filósofo e escritor existencialista, “só aquele que não está a remar é que tem tempo para balançar o barco”.