Crónica em branco – conclusão

Andava há demasiados dias para ir aos saldos de janeiro na Mango, até que resolveu ir na véspera de começar novo confinamento geral, decidida a calcorrear as lojas que visse, como se só dependesse dela regressar a casa carregada de sacos, o facto de depois não se poderem queixar da perda de rendimentos, os comerciantes que foram afetados nos seus negócios pela pandemia.

Vestiu-se, enfiou um casado que tapava a cintura das calças e passou à pressa uma escova no cabelo, que estava escorrido como quando lava e ainda está por secar. Certificou-se de que a porta ficava trancada e desceu saltando os degraus em par, não ligando ao cumprimento duma vizinha que subia com uma sacola de compras, como se chegando mais depressa tivesse direito a um desconto adicional de 50% dado aos primeiros mil clientes.

Saiu do estacionamento do shopping e maldisse a vida quando viu tanta gente aglomerada, a passear de olhar tranquilo como quem vê um jogo de futebol e sabe de antemão que vai ganhar o clube do seu coração. Apreensiva, colocou sobre a que tinha, uma segunda máscara descartável, e lá entrou, avançando a ziguezaguear por entre as pessoas, como quem sob uma forte enxurrada tenta passar pelos intervalos da chuva para não se constipar.

Pelo caminho, resistiu à tentação de entrar na Zara, de onde provinham as cuecas pretas que tinha vestido, nem de propósito por estar frio, de gola alta, mas aconchegantes como uma camisola grossa de lã que não deixa ver o soutien que está por baixo. Calçava umas botas que ressoavam de forma ligeira no pavimento, não o suficiente para anunciar que, à passagem dela, devia toda a gente focar-se na forma como ia vestida, desviando o olhar de tudo o que estivesse a fazer. As pontas soltas dum cachecol caiam-lhe nas costas e vinha abundantemente perfumada, na certeza de que só esbanjando charme a não barrariam à da porta da loja aonde pretendia entrar.

Subiu na escada rolante e deparou-se com uma fila de gente que começava junto à Primark. Dobrou a esquina encostada à parede oposta e parou diante da montra vistosa duma ourivesaria, para admirar um colar de pérolas que a faria retornar à Zara para comprar o tal vestido chique de festa que andava a namorar faz tempo. Perscrutou e não viu na fila nenhuma mulher, de qualquer idade, a quem ele pudesse assentar tão bem, e ainda mais, abrilhantado por um colar raríssimo ao pescoço que devia fazer pandam com um par de brincos que deviam estar expostos noutro lado.

Confiante, sentiu-se revigorada e numa magnífica forma, quando viu, refletido na superfície envidraçada da montra, de perfil o contorno da sua silhueta esbelta e harmoniosa como o ritmo numa sonata de Beethoven.

Passou adiante numa loja de artigos desportivos, mas parou à frente para cobiçar um par de sapatos de salto alto, pensando que neles, não precisaria de esticar o pescoço para beijar o namorado à pressa, antes de começarem a apoquentá-la as cãibras.

Entrou na Mango quando faltavam quinze minutos para as duas. Não tinha ainda o estômago a dar horas, mas de bom grado aceitaria o convite para ir de novo almoçar, do empregado bonitão que saía para fazer uma pausa. Era alto e de barba aparada, lembrava o clone da versão portuguesa do Sean Connery, que era 50% menos charmoso do que o original.

Não tardou a perceber que estava na secção feminina, pois viu-se rodeada de mulheres que só falavam das tendências recentes da moda como se as tivessem proibido de comentar outro assunto da atualidade. Desembrulhou uma camisola que não voltou a arrumar como estava e afastou-se à procura da secção das calças, iguais penduradas individualmente nos cabides, mas com diferenças, quando ao tentar vesti-las não conseguia que passassem na zona das ancas, as de tamanho com o número menor.

Comprou o que queria e dirigiu-se à Caixa para pagar. Estava lá uma funcionária diligente. Foi encaminhada por uma assistente fardada que parecia uma assistente de bordo mas daquelas que dão asas para voar. Sorridente, pediu-lhe o cartão de débito e digitou o NIF, e quando perguntou se desejava pôr nome na fatura, ouviu pedir que sim: “ … mas ponha simplesmente Carla “.