Da “Metamorfose” de Kafka, à “Metamorfose do Eu” – Lúcia Reixa Silva

Numa das obras de que honestamente mais gostei, de Kafka (Autor/Escritor nascido em Praga, República Checa, em 1883; falecido em Klosterneuburg, Áustria, em 1924) – “Metamorfose” – podem fazer-se mil e uma interpretações da história e dos seus personagens, sendo que uma das que é possível é pois, para mim, aquela de que irei falar aqui, por analogia à vida de cada um de nós e ao seu significado…

No livro, um homem, que é um dos personagens principais “gere” as economias da família – seus pais e irmã -, os negócios e o dinheiro, sendo ao mesmo tempo “o cérebro” e o pilar de afecto e de vida, daquela família. Sua irmã, “apagada” e tímida, e seus pais, inseguros pela idade e pela fraca formação intelectual e cultural, são pois completamente dependentes deste homem.

A certa altura desta história, este homem irá transformar-se lentamente, numa gigantesca barata, e esta é uma das “metamorfoses” mais evidentes e claras deste livro. Barata feia e hedionda em que se torna, passa a não poder estar entre os demais, e é trancado, para sempre, no seu pequeno quarto, pelos seus próprios pais.

Depois desta primeira evidente metamorfose, existe porém uma outra transformação – “metamorfose” também, menos esperada…Os pais inseguros tornam-se pessoas seguras e capazes de gerir os seus bens e negócios, fazendo-os prosperar atarvés da sua capacidade de trabalho e dedicação; a “irmã apagada”, transforma-se pois numa elegante jovem, bem mais segura de si do que anteriormente…

Nesta interpretação livre desta extraordinária obra, ocorre-me pois, por diversas vezes na vida, quantos de nós muitas vezes nos sentimos como um ou outro personagem…

Por vezes, como o homem da história, antes da metamorfose, parecemos, de forma absolutamente evidente para nós, nesse momento, ser insubstituíveis.

Insubstituíveis, não pelo afecto, porque neste aspecto penso mesmo que ninguém é substituível quando o afecto é autêntico e verdadeiro, mas pelo papel que desempenhamos na vida – como pais/mães, como filhos/filhas, muitas vezes no trabalho, junto de algum amigo mais próximo ou familiar, enfim, numa panóplia de situações, parecemos acreditar – pelo menos muitos de nós – que se não fosse o nosso “stressante” papel de “faz tudo”, muita coisa ficava por fazer, ou mesmo tudo…

Nesta nossa “arrogância”, parece por vezes evidente que sem nós nada funcionaria bem…olhamos para aqueles que de nós dependem, ao nível pessoal ou no trabalho, acreditando numa “ingenuidade egocêntrica” que esta dependência é real, e que sem nós, estariam perdidos e sem rumo…

Quando assim nos sentimos, apetece-me sempre pensar que será melhor não querer ser uma “barata” que fica fechada para sempre, para permitir ao Outro, a liberdade de ser ele próprio…Não devemos esperar esta metamorfose do nosso Eu, para permitir finalmente que o Outro se revele, e possa transformar-se, também ele, “de lagarta” a “borboleta”…

Por outro lado, por vezes, sentimos o contrário…talvez…que somos dependentes de alguma forma, do Outro, que nos “asfixia” angustiantemente com as suas palavras ou acções…Aquele que pensa que sem ele nada somos, nem nada fazemos…que não nos deixa espaço para sonharmos, sermos e estarmos, como bem entendermos…sem nos sentirmos “lagartas”, só porque somos diferentes desse Outro…

Numa analogia perfeitamente livre, permitam-me por um momento pensar que a Metamorfose do Eu e do Outro, processa-se no derradeiro momento em que Eu mudo perante mim e perante o Outro, fazendo com que a liberdade de Ser se torne uma realidade, e permita que ocorra em mim e no Outro, uma mudança, uma transformação.

Desengane-se quem se pensa insubstituível, à excepção do afecto que nos torna únicos e especiais, porque ninguém é, na verdade, insubstituível no seu papel…apenas no seu afecto…

Também aquele que se julga eternamente dependente do Outro, terá um dia de perceber que pode transformar-se, libertar-se, e finalmente Ser…

Muitas vezes penso em tanta gente que beneficiaria imensamente se por um dia, como que num momento, se transformasse nesta Barata hedionda, do “Metamorfose” de Kafka…verificando como a vida lá fora, continuaria, e o Outro dependente, talvez pudesse finalmente “voar”…Penso também naqueles que “baratas” se vão tornando, ainda que nas suas sombras se vejam como pessoas…

Penso também naqueles que poderiam, por um dia, por um momento, tornar-se livres, passarem de “feios” a belos, de inseguros a confiantes, bastando para isso que certos opressores, que ainda não conseguiram perceber, em muitos casos, que o são (porque o são por bem), se “trancassem no seu quartinho”, permitindo ao Outro a sua libertação…

Hoje a minha reflexão passou por aqui…pois não quero ter de ser Barata para ver o Outro crescer livremente, sem de mim precisar…nem quero ser “lagarta” que passa pela vida sem se transformar…

Quero Ser…tão somente…e deixar que o Outro possa Ser…mesmo ao meu lado…

E tu, que aí estás desse lado desta crónica, que a lês…alguma vez pensaste nisto?…

Deixo aqui o convite à leitura desta obra (ou a reler a mesma) – “Metamorfose”, de Franz Kafka…Afinal, como o autor dizia: “A literatura é sempre uma expedição à verdade”…e na procura da verdade, alcançamos muitas vezes, a verdade do nosso Eu…

Lanço também um convite à reflexão pessoal, e acima de tudo, ao “saber questionar-se a si mesmo”…enfim ao pensar na “Metamorfose do Eu”…

Tenham uma boa semana!

 

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Crónica de Lúcia Reixa Silva
De Alpha a Omega