Era uma vez no cinema: The Revenant

       A adaptação cinematográfica da obra literária de Michael Punke, “The Revenant”, foi alvo de inúmeros percalços e atrasos. Numa primeira fase, o realizador coreano Park Chan-wook foi o escolhido para realizar a obra, no entanto, a sua desistência fez com Jon Hilcoat assumisse o projecto. O australiano acabaria também por abandonar o filme, seguindo-se Jean-François Richet como realizador. Mais uma vez, o cargo de realizador ficou vago com o francês a afastar-se do projecto, fazendo com que Alejandro González Iñarritu pegasse neste “The Revenant”. Com apenas seis filmes no seu currículo, o realizador mexicano é um dos mais badalados e respeitados da actualidade. Desde o seu primeiro filme, “Amores Perros”, que as suas obras são alvo de muitos elogios por parte da crítica internacional e do público. Com “Babel”, o realizador levou para casa a Palma de Ouro de Melhor Filme, uma nomeação para o Globo de Ouro de Melhor Filme Dramático e para o Óscar de Melhor Filme. Mas foi com “Birdman”, que Iñarritu foi definitivamente consagrado como um grande realizador, vencendo o Óscar de Melhor Filme e Melhor Realizador. Um ano depois, o realizador mexicano volta a ser um dos grandes favoritos aos Óscares (recorde-se que nunca um realizador ganhou dois Óscares consecutivos) com este incrível “The Revenant”.

       Conhecido pelo seu cinema duro e negro, Alejando Iñarritu pegou na fantástica e verdadeira história de sobrevivência de Hugh Glass, caçador de peles abandonado pelos seus companheiros após um ataque de um urso pardo, para nos entregar uma verdadeira homenagem à natureza e à vida. Esta é uma obra onde é visível uma dedicação total de todos os seus intervenientes, isto porque todos entenderam que estavam envolvidos num projecto que tinha tudo para ser grandioso. Exemplo disso mesmo foram as filmagens de “The Revenant”, que decorreram durante nove meses em três países diferentes (Canadá, Estados Unidos da América e Argentina), visto que Iñarritu fez questão de não filmar em estúdios e sempre com luz natural. O resultado deste perfeccionismo? Um filme brilhante! Embora nunca tenha visto “Amores Perros”, arrisco-me a dizer que este é o melhor filme da carreira do cineasta natural da Cidade do México.

       Goste-se ou não, não há como negar que “The Revenant” é um filme único. Este tem sido o adjectivo mais usado (até DiCaprio o disse) por quem já o viu percebe que tem realmente a sua razão de ser, visto que não é todos os dias que vimos um filme deste género. Em “The Revenant”, Iñarritu puxa dos galões e mete todo o seu talento em tela (incluindo o seu ego), juntando ao seu cinema algumas características dos trabalhos de Terrence Mallick e Quentin Tarantino. Desta mistura de estilos surge uma imponente jornada de sobrevivência e vingança, que não tem problemas em demonstrar detalhadamente a forma animalesca e selvagem que um ser humano adopta quando convive eminentemente com a morte. É este realismo que transforma “The Revenant” num produto inesquecível e de uma tremenda beleza. Porque por mais cruel e sanguinário que “The Revenat” seja, este parece bastante autêntico durante toda a sua duração. Se a banda sonora é óptima, a sua fotografia é monumental. É um deslumbre para os olhos ver “The Revenant”, onde somos contemplados com paisagens cujo encanto é difícil de descrever em palavras, algo que é ainda mais impactante quando assistimos em formato IMAX, o que se justifica plenamente nesta obra. Mais um trabalho de grande qualidade de Emmanuel Lubezki, director de fotografia que venceu o Óscar de Melhor Fotografia nos últimos dois anos (“Gravity” e “Birdman”), e que este ano volta a estar nomeado e muito bem posicionado para levar a terceira estatueta para casa.  Não existe uma grande preocupação no seu argumento, pois este não é o filme de grandes esclarecimentos e diálogos, é essencialmente uma obra que se foca no poder das suas imagens, porque mais do que ser visto, este é um tipo de filme que deve ser sentido. O clímax final é a maior prova disso, com um duelo fenomenal entre as duas personagens principais, em que se espelha toda a crueldade e selvageria patente na obra, algo que muitas vezes quase nos faz tirar os olhos do ecrã! Embora todas as qualidades evidenciadas, existem também alguns pontos menos positivos. Tais como a duração da obra, que sairia beneficiada com menos 20/25 minutos, e alguns excessos da narrativa, que em certo ponto do filme fazem parecer que tudo de mau acontece a Hugh Glass. No entanto, são aspectos menores quando estamos perante algo tão cativante e envolvente como “The Revenant”.

       A cereja no topo do bolo são Leonardo DiCaprio e Tom Hardy. Christian Bale e Samuel L. Jackson estiveram muito próximos de dar vida a Hugh Glass, tal como Sean Penn de interpretar o vilão Fitzgerald. Felizmente, os papéis acabaram por ficar com DiCaprio e Hardy. Começando pelo actor britânico (que teve de abdicar de “Suicide Squad” para estar em “The Revenant”), sou um enorme fã do seu trabalho, pois trata-se de um actor incrível! Em “The Revenant”, o britânico tem uma prestação extraordinária, reforçando mais uma vez a ideia que tenho, de que não existe nenhum actor em Hollywood a usar a expressão corporal como ele. Tendo em conta que este ano, para além de “The Revenant”, teve interpretações de qualidade em “Legend”, “Child 44” e “Mad Max: Fury Road”, na minha opinião, Tom Hardy é o melhor actor do ano. Quanto a Leonardo DiCaprio (que esteve quase a ingressar na biografia de Steve Jobs, que acabou por contratar Michael Fassbender, curiosamente, o maior rival de DiCaprio ao Óscar de Melhor Actor), um dos actores mais injustiçados pelos Óscares nos últimos anos, brinda-nos com uma performance colossal. Não há dúvidas de toda a entrega e paixão que DiCaprio incute nas personagens que interpreta, mas aqui essa dedicação é ainda maior. Como o próprio disse, este foi o filme mais difícil da sua carreira, onde teve de andar por rios congelados e até mesmo comer fígado de búfalo cru. É uma interpretação de corpo e alma do actor nascido na Califórnia. Sem estes dois actores, o sucesso que “The Revenant” alcançou dificilmente seria atingido. Ambos estão nomeados nas categorias de representação dos Óscares 2016 e tudo o que não seja a vitória dos dois será uma tremenda injustiça!

       “The Revenant” estará na corrida por doze categorias na próxima edição dos Óscares, que se realiza no dia 28 de Fevereiro. Doze categorias! Tendo já vencido o Globo de Ouro de Melhor Filme Dramático e o de Melhor Realizador, não será surpresa para ninguém se repetir o feito nos Óscares. Se bem que ainda não vi “Spotlight” e a Academia ainda é demasiado fechada para premiar um filme com as características de “Mad Max: Fury Road”, que para mim é o melhor filme do ano, ficarei agradado se o tão desejado prémio seja para este novo filme de Iñarritu. Seria o reconhecimento de um cinema cuidadosamente detalhado e perfeccionista, do qual resultou esta obra única e irreverente. Que Iñarritu, DiCaprio e Tom Hardy, continuem neste mundo por muitos anos!