Long Ranger Dois – Francisco Duarte

I

            Os dias começavam sempre do mesmo modo. O estacionar do Ford Fiesta diante da entrada do aeródromo quando o Sol ainda se erguia preguiçosamente no horizonte, o arrastar de pés ainda adormecidos pela placa, sob o ar fresco da manhã, e o apitar da máquina de café que fazia retinir os ouvidos. E, por fim, o escorrer do líquido preto e quente pela garganta, que o trazia definitivamente para o mundo dos que estavam acordados.

“Henrique?” A voz do controlador de terra, um jovem bombeiro chamado Dinis, veio da sala onde estava montado o computador e o equipamento de rádio. “Hoje vieste cedo.”

O piloto encolheu os ombros.

“Quero dar uma boa olhadela no 206. Pode ser que nos enviem para M– hoje.” Sublinhou as palavras com o atirar do copo de plástico vazio para o caixote de lixo, antes de agarrar numa sanduiche e sair da barraca que servia de posto de comando. O helicóptero Bell 206 Long Ranger modificado para combate a incêndios esperava na placa, junto das cisternas de combustível aeronáutico. Quando chegou junto daquela máquina longa e esguia, estava já a suar ligeiramente. Aquele ia ser um dia quente, pensou para si mesmo.

Foi pouco depois de Pedro, o mecânico da equipa, chegar e iniciar o abastecimento do 206, que se deu o primeiro alarme. Dinis veio à porta gritar para que Henrique subisse para o helicóptero e o pusesse no ar. Apesar de ser tão cedo, o corpo do piloto estremeceu de vida perante a chamada para a ação.

“Despacha-te com isso!” Exclamou Henrique para Pedro, antes de saltar para o lugar do piloto, no lado direito do cockpit. Começou imediatamente a premir botões, fazendo os diferentes sistemas da máquina ganharem vida. Quando começou a ouvir o troar do rotor principal e a sentir a vibração da fuselagem sentiu a chamada para a liberdade de voo aquecer-lhe o sangue.

Pedro surgiu finalmente diante da máquina, indicando por gestos que estava tudo em ordem. Henrique anuiu, e fez o helicóptero ganhar altitude. Apenas um pouco, o suficiente para deslizar até ao grande tanque de água no início da pista e submergir a mangueira que pendia do fundo do 206, de modo a encher o tanque do helicóptero de combate a incêndios com pouco mais de meia tonelada de água.

Um aviso sonoro indicou o atestar do depósito, e logo Henrique fez a leve máquina ascender até uns bons duzentos metros, avisando a torre de que se dirigia a uma emergência e da rota que ia seguir. Os três segundos que a rapariga que estava no controlo aéreo do aeródromo demorou a dar a autorização foram longos demais para o piloto reformado da Força Aérea, que aos poucos era dominado pela ânsia de entrar em ação e fazer a diferença no combate desesperado contra os incêndios florestais.

“O céu está livre, pode seguir para 0-9-5, Long Ranger Dois.” Replicou a rapariga. Tinha uma voz bonita, pensou Henrique, antes de confirmar e se lançar num voo veloz sobre o interior português.

A vista era magnífica, amplos montes cobertos de verde salpicados pelo branco das aldeias tradicionais e riscado por estradas e trilhos que ligavam todos aqueles locais, até onde a vista podia alcançar sob um cristalino céu azul. O olhar de Henrique perdeu-se para sua direita, de onde subia uma cortina negra do incêndio em M–, bem na distância. Era para lá que ele queria, ir, mas não era essa a missão que lhe fora dada. E para já o que tinha teria de ser suficiente…

II

            “Não vejo nada.” Disse Henrique para o microfone. Do outro lado da linha Dinis soava desapontado.

“Nem fumo, nem nada?”

“Negativo.”

“É falso alarme…” Houve uma pausa, que o piloto usou para fazer um novo arco sobre a região onde supostamente estava a começar mais um incêndio. A voz de Dinis regressou finalmente. “Já confirmei, não se passa nada aí. Regressa à base.”

“Entendido.”

Era dececionante. Tantos bombeiros a precisar de ajuda, tantas pessoas desesperadas a verem as chamas a chegarem às suas casas, e ele ali, com um importante meio aéreo a voar em círculos sobre um falso alarme. Infelizmente, era assim que as coisas eram. Estabilizou o 206 e começou o voo de regresso ao aeródromo. A máquina estava mais pesada do que devia, com um centro de gravidade centrado no fundo da fuselagem devido ao depósito de água cheio. Sentir-se-ia mais feliz se não tivesse aquele arrasto acrescido.

Os seus pensamentos foram interrompidos pela voz de Dinis, novamente a irromper pelo canal de rádio, acompanhada de alguma estática.

Long Ranger Dois, ainda tens água no tanque?”

“Afirmativo.”

“Ok, recebi novas instruções. Vais virar para 1-6-5 e participar no combate ao incêndio em M–.“

Ali estava. Agora podia realmente fazer a diferença. Virou imediatamente a manche de controlo, numa curva quase apertada demais.

“Entendido, já estou a ir.”

“Muito bem. Quando lá chegares pergunta pelo Comandante Mendoça. É ele quem te vai dar as instruções daí para diante.”

“Ok!” Henrique voou então na direção daquele véu negro que emergia de um conjunto de montanhas em brasa, as chamas lavrando pela encosta abaixo. Para Norte apenas se via uma triste extensão de cinzas, como se alguma erupção vulcânica tivesse ali tido lugar. O Comandante Mendoça não perdeu tempo a dar instruções.

“Existe um lago cinco quilómetros a Sul, onde podes ir buscar água.” Exclamou ele, no meio da explicação. E depois orientou Henrique para lançar a primeira carga de água numa língua de chamas que ameaçava um estrada usada pelos bombeiros para mover veículos e pessoal. Quase ao mesmo tempo um grande hidroavião Canadair CL-215 largava uma imensa parede de água sobre o incêndio principal, num esforço de o atrasar para que os bombeiros conseguissem tomar as suas posições. Havia ainda um helicóptero Bell 212 Twin Huey envolvido nas operações, mas esse tinha ida abastecer-se de água e não se via em lado algum.

Com a sua máquina bem mais leve, Henrique ganhou altitude e deu uma volta ao monte para ter uma boa noção do espaço e assim saber o que fazer quando regressasse com um novo carregamento de água. O que viu não o animou muito. O incêndio era selvagem e não iria dar tréguas até aos seus momentos finais. E foi com este pensamento que virou para Sul e procurou o tal lago.

III

            Regressou ao aeródromo duas horas depois, quando o combustível ameaçava esgotar-se. Ainda fez uma largada a mais, contra as recomendações de Dinis e Pedro, mas ele, que conhecia melhor o 206, decidira arriscar. Aterrou junto dos depósitos de combustível com a luzinha da reserva a dar sinal. Depois disso nem hesitou em saltar para a placa e correr para a barraca servir-se de água e sanduiches.

“Então, como está aquilo?” Perguntou Dinis, que também aproveitou para fazer um almoço improvisado.

“Uma porcaria!” Resmungou Henrique. “Só têm para aí uns vinte veículos e uns cem homens, mais os três maios aéreos. E o tamanho do fogo! Nem sei como é que só lá estamos nós.”

“Parece duro…”

“Parece o Vietname é o que é, com helicópteros por todo o lado e aviões a largar carga sobre as montanhas.” O piloto não conseguiu evitar um leve sorriso ao dizer aquilo. O sangue ardia-lhe de emoção. Era algo que não conseguia evitar.

Sem maiores trocas de palavras, ambos os homens engoliram o que puderam e correram para os seus postos. Pedro já abastecera o 206 e a voz agradável da controladora aérea dava a autorização para descolar e seguir para Este. O piloto estava de volta à ação e feliz por isso.

O incêndio estava mais controlado agora, apesar do calor do meio-dia. Mais dois meios aéreos haviam sido desviados para a região, inclusive um enorme helicóptero Kamov Ka-32 Helix, uma máquina tão feia quanto eficiente. No meio da confusão, Henrique abafou uma língua de fogo que tentava fugir da conflagração principal, que agora parecia focar-se numa pequena aldeia no sopé do monte mais próximo.

Long Ranger Dois, é você que está no vale, não é?” A voz de Mendoça, muito aflita, emergiu dos auscultadores, enquanto Henrique procurava o lago onde se reabastecera durante a manhã.

“Sou eu.”

“Tenho um problema. Tenho um veículo e alguns homens cercados num reacendimento do lado de lá do monte ativo. Os outros meios aéreos estão todos a reabastecer, e preciso que seja você a ir largar água para eu os poder tirar de lá.”

“Ok!” Novamente, o piloto sentia o clamar pela ação, contudo não via lago nenhum onde pudesse ir buscar água. Secara durante o dia. Onde poderia ir buscar o precioso líquido para poder salvar aqueles bombeiros?

Estava a voar de volta à zona de combate quando viu uma mansão a espreitar pelo meio das árvores ainda verdes. Curioso, curvou nesse sentido para inspecionar melhor. Como esperava, o grande complexo possuía uma bela piscina, cheia de líquido cristalino e fresco. Mergulhou imediatamente e ficou a pairar, a mangueira dançando ao sabor do ar agitado pelo rotor principal enquanto Henrique descia com cuidado.

Subitamente um homem saltou para diante do 206, agitando os baços. O piloto perguntou-se acerca do que quereria ele, e só depois reparou que o estava a mandar embora. Mas o que era aquilo? Ele não via que estava um incêndio a lavrar nas proximidades? Que o próximo a ficar sem casa poderia ser ele próprio?

Resolveu ignorá-lo. Ativou a bomba e removeu toda a água que pôde. Até assobiou enquanto o fazia, para desespero do filho da mãe rico que se estava a marimbar para os problemas dos outros e o queira mandar embora. Quando o sinal de tanque cheio apitou, Henrique subiu nos ares sem grandes cuidados, deixando o homem enfurecido para trás. Tinha mais em que pensar no momento.

Conseguiu salvar os pobres rapazes que ficaram encurralados pelas chamas, mas o combate ainda não estava terminado. Parecia nunca estar…


Crónica de Francisco Duarte
O Antropólogo Curioso