O céu já não é o limite… – Francisco Duarte

…mas o início.

Com este início, algo cliché, trago-vos o tema inevitável desta semana: o salto de Felix Baumgartner feito em nome da missão Red Bull Stratos.

Nesta época de crises políticas e económicas, guerras civis e de media que parecem querer convencer-nos que os mundo vai acabar não tarda, o facto de ainda existirem pessoas e projetos que cativam a imaginação e provam que, contra todas as possibilidades, a Humanidade ainda é capaz de feitos que capturam a imaginação reveste-se de uma importância bem real.

Como outros oito milhões de pessoas, acompanhei o voo pelo canal de YouTube da Red Bull, desde a largada do balão até à aterragem bem-sucedida do paraquedista. Honestamente, foi uma aventura que conseguiu reunir todos os elementos de uma boa história, como sucede sempre com as grandes odisseias. Mas recuemos um pouco no tempo para termos uma melhor perspetiva de tudo o que aconteceu este fim-de-semana.

No final dos anos 50 o alto-comando da Força Aérea dos Estados Unidos começava a preocupar-se com as técnicas que seriam necessárias para abandonar as modernas aeronaves militares. Apenas uma década antes, os aviões mal conseguiam subir aos 10.000 metros e mal ultrapassavam os 700km/h. Após a invenção do motor a jato e do desenvolvimento dessa tecnologia, os caças começavam a ser capazes de ultrapassar Mach 2, isto é 2400km/h (a grande altitude, nestas condições Mach 1 representa 1200km/h. Isto será importante daqui a bocado), e já conseguiam alcançar altitudes na ordem dos 20.000 metros. Tanto a velocidade, tão intensa que se receava que pudesse ferir o piloto durante uma ejeção, como a atmosfera em si representavam problemas que se sentiam ter de ser ultrapassados.

Coloquemos o problema em perspetiva. A atmosfera existe em camadas, sendo a mais densa aquela que está mais próxima do solo e onde a vida como a conhecemos é possível, a troposfera. Apesar de corresponder apenas a uma fração da espessura total da atmosfera, com cerca de 17 km de espessura máxima, a troposfera corresponde a cerca de 80% da sua densidade. A parte mais baixa, que está em contato com a superfície de planeta, chama-se camada limite atmosférica, é aquela onde as condições são ideias para a nossa existência, em termos de composição do ar, pressão, e temperatura. Ainda assim, à medida que vamos subindo ao longo da troposfera, as condições vão-se modificando com alguma celeridade. A temperatura vai descendo, a pressão atmosférica decaindo e a presença de oxigénio torna-se mais esparsa. Aos dez quilómetros a temperatura já corresponderá a mais de 50 graus negativos, e a pressão atmosférica, medida em milibares, terá descido dos 1000 para os 300. Qualquer tentativa de respirar aqui terá de ser feita com aparatos respiratórios, não há oxigénio para manter um ser humano vivo muito tempo.

Mas acima da troposfera temos a estratosfera, que se estende até aos 50 km. Aqui é de todo impossível de respirar. A temperatura sobe um pouco e fica estável, apesar de continuar negativa, e a pressão torna-se tão baixa que os fluidos do corpo humano evaporar-se-iam caso este ficasse exposto aos elementos. Estas condições representavam óbvios problemas para os projetos da Força Aérea, pelo que começaram por fazer testes com bonecos largados de balões de grande altitude, o programa High Dive, que provou que um corpo poderia entrar em espirais planas com 200 rotações por minuto, fenómeno fatal para um ser humano. Mas era necessário ir mais além com os testes. Portanto, passou-se à experimentação com humanos, o programa Excelsior.

O primeiro voo tripulado de grande altitude num balão havia sido conseguido por Auguste Piccard, físico suíço, que alcançara os 15.785m em 27 de Maio de 1931. Os americanos iriam bater esse recorde. A 16 de Agosto de 1960, a cápsula Excelsior III foi lançada e num voo de uma hora e meia o balão que a carregava alcançou finalmente os 31.333m. Para sobreviver a estas altitudes, o paraquedista, piloto da Força Aérea Joseph Kittinger, teve de usar um fato pressurizado e respirar oxigénio puro para que o nitrogénio do sangue não se transformasse em bolhas fatais com a quebra de pressão. Mesmo assim, o fato teve uma falha e o piloto perdeu temporariamente o uso de uma mão. Ainda assim, decidiu levar o salto avante. Nesse dia estabeleceu recordes que demorariam mais de 50 anos a ser quebrados. Uma queda livre de 4 minutos e 36 segundos e velocidades na ordem do 988km/h, conseguidas apenas por atmosfera ser tão rarefeita e oferecer pouco atrito. Foi um momento que ficou para a História.

Também foi um momento que haveria inspirar milhares de pessoas nos anos que se seguiriam. Uma dessas pessoas foi um jovem austríaco chamado Felix Baumgartner, que via no piloto americano o seu ídolo pessoal. Conhecido pelas suas façanhas, como os BASE jumps mais altos e mais baixos já registados, Felix começou a desenvolver a ideia para bater os recordes de Kittinger por volta de 2005. A ideia era conseguir bater quatro recordes: o voo mais alto já conseguido com um balão tripulado, alcançando os 37km, que corresponderia também ao salto de paraquedas mais alto de sempre, de conseguir a mais longa queda livre, e, também, o recorde de velocidade, e ter-se o primeiro homem a bater a velocidade som sem a ajuda de um veículo. Foi em 2010 que finalmente que Felix estaria a trabalhar com uma equipa de cientistas, e inclusive com o recordista anterior, e sob o patrocínio da Red Bull para fazer esta façanha extraordinária.

Após anos de desenvolvimento e vários saltos de teste, marcou-se o voo da cápsula Zenith e do balão Stratos que a carregaria até à estratosfera para o dia 9 de Outubro de 2012. Iria partir do Centro Aéreo Internacional de Roswell, no Novo Méximo, Estados Unidos da América. Infelizmente ventos fortes impossibilitaram o voo, e tentativas marcadas para os dias seguintes foram canceladas repetidamente. Finalmente, no Domingo 14 de Outubro de 2012, as condições revelaram-se ideais. O balão foi enchido de hélio e descolou finalmente, pelas 9:35, hora local. Demorou cerca de duas horas e meia a chegar aos 39.000 metros, ainda mais alto do que se esperava. Às 12:08 Felix finalmente abriu a porta da cápsula, sendo premiado com uma vista extraordinária do planeta. Àquela altitude o céu já não é azul, mas negro. Abaixo existe apenas um brilho azulado vindo de uma superfície em que todos os detalhes são minúsculo, e a presença humana quase invisível. E foi perante esta paisagem, que tão poucos seres humanos têm a possibilidade de ver, que Feliz se lançou. E conseguiria atingir os 1.343 km/h, esmagando o recorde anterior (isto conseguido no mesmo dia em se deu o voo histórico de Chuck Yeager).

Mas o salto não se deu sem incidentes. Após cerca de dois minutos de queda livre, entrou numa rotação descontrolada, como previsto nos antigos testes com bonecos. Felizmente conseguiu controlar a direção, e, por fim, aterrar em segurança no deserto do Novo México. Não conseguiu bater o recorde de tempo de queda livre, ficando-se pelos 4 minutos e 22 segundos.

Ainda assim, foi um feito incrível, que ficará para a História, e que nos dá algo para nos relembrar que o espírito humano, se bem que selvagem e destrutivo, também consegue fazer coisas extraordinárias, e tornar possível o impossível.


Crónica de Francisco Duarte
O Antropólogo Curioso