Eram 22 horas, estava a caminho do bar onde combinamos nos encontrar. Ia atrasada, como era habitual, chovia e o casaco comprido não me cobria as pernas desnudas pela saia preta justa, apenas os ombros despidos pela camisola rosa que resolvi finalmente usar ( que se lixe, pensei enquanto experimentava a roupa em frente ao espelho ) a rua perpendicular à rua do Coliseu estava um autêntico lamaçal que incomodava o meu andar de salto alto que eu tanto apreciava usar em noites festivas. Tínhamos combinado atempadamente este encontro de amigas, a Catarina, a Bela, a Soraia, a Maria e eu. Mal o dia tinha iniciado já três tinham cancelado o encontro por motivos alheios ao meu entendimento feminista. Do encontro que tinha tudo para ser uma noite divertida de mulheres só restavam duas, eu e a Maria. Estava já na entrada do bar quando a Maria mandou um sms apressado: mil desculpas, aconteceu um contratempo, o miúdo está doente. Mando uma mensagem logo a seguir: O João não pode ficar com ele? Maria responde: Não, já sabes que o João não fica com o filho quando ele está doente. Fica para a próxima, Adoro-te, mil desculpas. Ali estava eu, ensopada da chuva, saltos enlameados, enervada por ainda existirem estes discursos de mães e pais, mulheres e homens, triste, sobretudo triste, porque cinco mulheres perderam, mais uma vez, a oportunidade de passarem uma noite divertida, com piadas sobre pénis pequenos, rabos jeitosos e partilha de alguns segredos sobre o sexo ( só alguns, os mais obscuros guardamos para nós ), de dançar até caírem para o lado e beberem uns shots que aquecem até à alma, ficariam todas em suas casas, aborrecidas de morte, a ver o mesmo de sempre na televisão, talvez uma espreitadela no facebook, entre lavar a louça e colocar a máquina da roupa a trabalhar, ou seja, mais um dia, melhor, mais uma noite tenebrosamente igual às anteriores.
Que se lixe! Já que aqui estou vou entrar e beber um copo, o máximo que pode acontecer é acabar a noite bêbeda, nas traseiras de um carro com um tipo de barba que nem o nome decorei, pensei eu. Entrei, algumas mesas vazias, pessoas dispersas, o espaço era acolhedor e aprazível, sentei-me ao balcão, tirei o casaco, pousei a pequena mala. Boa noite, pode ser um cuba libre por favor. Certo é não dançar esta noite, logo eu que gosto tanto, olhei para a pequena pista de dança, um pseudo casal dançava ao som de Angus & Julia Stone , a noite promete para estes dois, três homens encostados às laterais da pista, provavelmente à pesca, com essa camisa à padre não vais ter sorte amigo, ri-me enquanto visionava um deles. Peguei no telemóvel, esquecido e ainda bem, entre as chaves de casa e o estojo de maquilhagem. Olá, está sozinha? Rodei a cabeça, olhei, vi o seu sorriso e de relance os olhos…hum, sim estou. Posso me sentar? Sim, porque não? Sorri.
– Sou o Ricardo. Olá.
– Ana.
Ficamos ambos um pouco desnorteados, eu por não apreciar de forma nenhuma engates, ele porque não devia ter experiência nenhuma nessa matéria.
–Ana, certo? O que a levou…posso a tratar por tu?
–Sim, por favor, a idade há muito que não é um posto. ( Que merda acabei eu de dizer, o tipo deve ter uns 40 e muitos e eu apenas 34 )
-Sim tem, digo, tens razão. O que leva uma mulher a estar sozinha num bar nocturno?
-Coloco a mesma questão a ti.
Sorriu. Passou a mão pela testa, tocou levemente na barba. Pediu uma água ao barman.
–Não consomes álcool?
-Não, hoje não.
-Posso saber o motivo?
Desconversou. Respondeu à questão anterior com um semblante triste. Não é opção minha estar sozinho, a vida é mesmo assim.
-Acho que posso dizer o mesmo. Na realidade era para estar com quatro amigas mas todos desmarcaram e aqui estou eu, sozinha com um Ricardo e uma cuba libre, qual a probabilidade?
-És divertida, já percebi. E irónica também.
–Agora que já me conheces podes te apresentar.
–Bem, vou tentar igualar no sarcasmo. Sou o Ricardo, como já disse, tenho 48 anos, sou professor, sou divorciado há tempo suficiente para me ter esquecido do que são cuecas femininas e uma casa decorada com bom gosto.
Ri às gargalhadas. Sim, estamos ela por ela no que toca ao humor. Disse.
–E tu, também és divorciada?
-O que te leva a presumir isso?
-Não tens aliança.
-É um anel no dedo que prova um compromisso?
–Já é assim desde os tempos de Adão e Eva. Disse Ricardo para minimizar os estragos de uma pergunta que para ele seria inofensiva.
-Sou casada. Há tempo suficiente para me ter esquecido do que são boxers masculinos e uma casa decorada com tempo perdido.
– Bem, pelo menos estás atenta ao que eu digo, menos mal, a noite ainda promete. Ambos riram e olharam um para o outro.
–Em que é que trabalhas?
-Sou contabilista. Mentiu Ana, prefere assim.
–Gostas de ser professor? Qual foi a melhor coisa que um aluno já te disse até hoje?
-Professor não foi a minha primeira escolha. Quando era miúdo queria ser piloto de aviões, mas quando fui para a universidade, a morte da minha mãe, sei lá, uma coisa levou à outra e hoje sou professor. Não me arrependo embora ainda sonhe com aviões. A melhor coisa que um aluno já me disse, essa é difícil…
– Leva o tempo que quiseres. Ainda só bebeste uma água. Ricardo sorriu novamente.
–Então há justificação para não usares aliança?
– É neste momento que inicias as frases de engate?
–Sempre na defensiva, já percebi, estás magoada, compreendo…sabes, infelizmente sei pouco sobre aviões e ainda menos sobre mulheres.
Perante estas palavras sinceras de Ricardo, Ana conseguiu também ela ser sincera. Não sou feliz, deve ser por isso, não vou usar algo que não me define, vou fazer uma comparação estúpida, é como a roupa, não vais vestir uma saia que não gostas, nem a vais usar só porque tem de ser, porque a sociedade obriga, o padre que vos casou exige e a vizinha do terceiro andar controla. Não vivo pela opinião dos outros.
–Que idade tens?
-34.
-Casei com 32, divorciei-me 10 anos depois, fui um filho da puta, um pai ausente, um marido ainda mais ausente, ela conheceu outra pessoa, ainda bem que o fez, eu mereci. Agora compreendo, a maturidade assim o obriga. Porque é que não és feliz?
– Presumes que eu não seja feliz. A felicidade não é um sentimento constante…
-Vejo nos teus olhos. Ana corou, sentiu-se ridícula, um gajo que mal conheço a avaliar-me, não tenho paciência para tipos armados em poeta. Vou-me embora, está a ficar tarde para mim.
–Não vás. Ricardo agarrou na mão de Ana. Não estamos a cometer nenhum erro, estamos só a conversar.
-Tenho mesmo de ir.
–Posso te acompanhar?
Ana não respondeu. Levantou-se e dirigiu-se à porta do bar. Chovia intensamente, as ruas estavam cheias de malta nova, bebiam, fumavam, sorriam, apalpavam aqui, beijavam acolá, enfim, aproveitavam a vida, fazem bem, pensou Ana. Ricardo abriu a porta do bar e apreciou Ana, uma mulher sem dúvida interessante. Afinal ainda te faço companhia. Antes que nos despeçamos deixa-me dizer-te algo: Hum…eu não bebo porque estou em recuperação. Sou alcoólico, não bebo há três anos, dois meses e seis dias, hoje vim festejar o meu progresso, com água.
Ana ficou admirada pela honestidade de Ricardo. Sabes, se isto fosse um primeiro encontro, diria que estavas tramado, fugia a sete pés.
A piada foi o suficiente para quebrar o ambiente pesado que se sentira momentos antes, no bar.
–Vou apanhar um táxi, fazes-me companhia até lá? Ricardo acenou com um sorriso.
–Já que estamos em modo de confissão…sabes, qualquer mulher no meu lugar seria felicíssima.
–E tu, porque não és?
-Porque não fui ensinada a contentar-me com pouco.
–O que é pouco para ti?
-É o muito para a maior parte das mulheres. Eu sou tudo ou nada.
Chegaram à praça de táxis. A chuva cessou, corria uma leve brisa de vento nocturno, os candeeiros da cidade mantinham-se acesos. Posso ficar com o teu contacto?
–É melhor não. Não posso. Sou casada.
Ricardo argumentou: Qual a probabilidade de um encontro não planeado como este acontecer novamente?
–Não foi um encontro, foi um desencontro.
Ana sorriu, fez uma festa no rosto de Ricardo, virou costas e entrou no táxi. O táxi iniciou a marcha, Ana não olhou para trás. Começara a chover novamente.
Fim
Um conto lindíssimo, dava um romance.