O lado negro do confinamento

Não vivemos tempos fáceis. O ser humano não foi feito para estar enclausurado dentro de quatro paredes. A pandemia veio alterar muitos dos nossos comportamentos sociais, mas também veio trazer algumas coisas boas como, por exemplo, de repente, descobrir-se que, afinal, aquelas pessoas que vivem connosco há vários anos na mesma casa, a partilhar o mesmo tecto, até são bastante interessantes e, para nossa própria surpresa, até pode-se denominar como “família”. Com toda a certeza que até há famílias a aumentar devido aos confinamentos a que a pandemia tem obrigado. Mas também existe o lado negro da força deste confinamento, que tem surgido de uma forma bastante agressiva e, por vezes, até bastante surpreendente — falo obviamente da deterioração da relação entre vizinhos. Antigamente, os vizinhos só se ouviam uns aos outros mais ao final da noite — ou mesmo a largas horas da madrugada, durante loucas sessões do denominado “karaté alentejano” —, mas agora consegue-se saber perfeitamente quais são os horários caseiros dos nossos vizinhos. Com isto, não estou a apontar o dedo aos meus vizinhos — no caso de eles chegarem a ler este amontoado de letras e palavras sem nexo e credibilidade —, porque os meus vizinhos são tão porreiros que parecem caracóis, porque nem chego a aperceber-me que estão em casa, de tão silenciosos que são. Hum… Para comprovar a existência do “lado negro” do confinamento, transcrevo, de seguida, um diálogo entre vizinhos à janela, que tive a oportunidade de assistir.

As duas vizinhas encontraram-se à janela, enquanto estavam a estender a roupa na corda. Uma mora no 2º andar (a quem decidi atribuir o nome fictício de Marlene) e a outra no 3º andar (que será a Tucha)…

Tucha: “Boa tarde, vizinha…”

Marlene: “Olá, vizinha…”

Tucha: “Mais um dia, não é verdade… fechados em casa…”

Marlene: “Verdade. E mais um dia a acordar cedo demais…”

Tucha: “Pois, eu entendo. Eu também não consigo acordar tarde. Acordo sempre às horas que acordava para ir trabalhar. São rotinas difíceis de se abandonar…”

Marlene: “Não concordo. Eu, se me deixassem, não acordava menos que as 11 horas todos os dias. Mas, lá está, não me deixam…”

Tucha: “É uma chatice, eu sei…”

Marlene (a começar a enervar-se): “É uma chatice, é! E qualquer dia ainda vai ser muito mais chato!”

Tucha: “Mas temos de ter calma, vizinha…”

Marlene (a perder a paciência): “Calma?! Como ter calma?! Diga-me?!”

Tucha: “Oh… então, temos de pensar que isto é passageiro e que a pandemia não tarda vai embora e voltamos todos às nossas rotinas…”

Marlene (já sem rodeios): “Não! A pandemia não vai embora, porque a pandemia aqui do prédio é a sua família!”

Tucha: “Como assim?!”

Marlene: “Sim, sim! O barulho que você e a sua família faz todos os dias é insuportável!”

Tucha: “Olhe, ó florzinha de estufa, você é que é insuportável!”

Marlene: “Ou são os putos a correrem pela casa logo às 7h30 da manhã e você aos berros com eles, ou então à noite com o seu marido! Ninguém dorme no prédio com os guinchos! Parece que está a engasgar-se, e se calhar até está, e não deixa ninguém dormir!”

Tucha: “Ó minha querida vizinha, desculpe lá se, ao contrário de si, eu tenho uma vida sexual bastante activa e saudável… Já você… isso deve estar cheio de teias de aranha! Se quiser eu posso aí mandar o meu marido para lhe limpar isso, já que mais ninguém o faz! Invejosa!”

Marlene: “Sua vaca!”

Tucha: “Velha rançosa!”

Marlene: “Velha é a senhora sua mãe!”

Tucha: “Não meta a minha mãe nisto que ela está adoentada!”

Marlene: “Ai sim? Então, será Covid-19?”

Tucha: “Não sabemos ainda. Estamos à espera do resultado do teste.”

Marlene: “Ah, não há-de ser nada, vai ver, vizinha.”

Tucha: “Que Deus a ouça, vizinha…”

Marlene: “E vai ouvir… As melhoras para a sua mãe, vizinha.” 

Tucha: “Muito obrigado, vizinha… Se precisar de alguma coisa, diga. Estamos por casa o dia todo…”

Marlene: “Obrigado e igualmente. ‘Té logo!”

Tucha: “Adeusinho. ´Té logo.”

 

Enfim, vidas… de… confinamento…