O meu nome é Margarida – André Marques

O meu nome é Margarida. Podia ser Joana. Mas não. É Margarida.

Margarida qualquer coisa chique. Dizem que é coisa de rico.

Pérola. Grega. Criatura de luz. Estes foram os significados que encontrei para o meu nome.

Santa Margarida, padecida no séc. IV, foi a primeira pessoa famosa com este nome. A seguir a mim, evidentemente.

Margarida. É o que assume o cartão de cidadão. E outras coisas. Na boca de quem me chama. Por exemplo. E não sou exemplo para ninguém. Muito menos sirvo para base de definição.

Mas atenção; Margarida deve assumir um tom nasalado. Dizem que é coisa de rico. Pronúncia, ou sei lá o que é.

Os meus pais desaguaram imensamente deve fazer agora dez anos. Não possuo bem a certeza. Como sou opulenta, não fixo datas. Obviamente. Tenho quem realize essa árdua tarefa por mim. É a vantagem de ser dona de mim mesma, e dos outros. Aliás, o que me falta mesmo é ter alguém que me limpe o cú quando vou emporcalhar as merdas que como antes de ir dormir às três da manhã. Depois de falar com a Sissi, uma gaja que já foi estupidamente fecunda e agora não tem nada. Também é chique perder tudo. Menos a pose. Essa é uma estátua. Com olhos de lágrimas.

Depois de eternamente privada de mãe e de pai, granjeei uma certa habilidade para a arrogância. É o que dá herdar fortunas desmedidas aos 23 anos de idade. Tornei-me afortunada e roubei uma nova inimiga. Dei-lhe a alcunha de simpatia. Tendência natural. Conforme as situações.

Desconheço o sítio onde moro. Disseram-me que a casa pertenceu aos meus falecidos progenitores. Passaram-na para mim. Não interessa. A casa é grande, dá para fumar uns charros sem correr o perigo de manchar os cortinados e ainda posso mandar umas valentes fodas sem que ninguém me ouça, ou interrompa. Apenas sinto os carros ao longe, num lugar onde tudo é permitido, exceto os meus sapatos Louis Vuitton, que o atrasado mental do Fred me ofereceu quando foi a Paris em trabalho. Mentira. Roubou o dinheiro à velha da mãe e foi para lá comer umas gajas peitudas e cheias de celulite. Ele e uns amigos da mesma laia. Disse-me uma vez que as miúdas de Lisboa são umas azeiteiras de primeira e têm uma certa inaptidão para se lavarem por baixo. O povo diz que quem tudo quer, tudo perde. E foi assim que ele me perdeu. Do nada, por causa de tudo.

Conheci o Fred num bar da moda, em Lisboa. Não importa introduzir o nome. Assim que o vi agarrado a uma imperial, fiquei maluca. Dei por mim a não me importar de ser uma gota de álcool a escorrer por aquela boca abaixo. Senti-me uma verdadeira cabra de duas patas. Mas feliz. Há as putas finas, e há as putas felizes. Assim com o há as cabras de quatro patas e as de duas patas. Aproximei-me do tipo e não fui de modas; espetei-lhe um beijo na boca tão grande que quase o deixei inanimado. Assim, de repente. A Carla e a Ana, que tinham ido comigo, nem se aperceberam. Só bebiam. Os gajos das outras, claro.

Trocámos umas mensagens e começámos a andar pouco tempo depois. Umas vezes a correr. Sei lá! E só ao fim de uma semana – entre uma queca aqui e outra ali – é que acautelei que estava completamente apanhada por ele.

Pior! Por um gajo que nem conhecia.

Pensei: Foda-se, esta merda não me está a acontecer! Nem conheço o tipo de lado nenhum! E uma mulher quando se perde por um par de bóxeres cheio de bonequinhos pornográficos é pior que uma lapa. Apaixonada, ainda por cima. É tramado.

Não! Eu não podia estar a apaixonar-me. Estava demasiado enamorada pela minha independência. Começar a envolver-me com um borra-botas com cara de sapo, estava, inequivocamente, fora dos meus planos.

Armei-me em esperta, claro. Macaca que sou, chamei a Berta, que é feia e gorda que tresanda, e convidei-a para um joguinho. A merda é que para a convencer tive que lhe preparar um banquete que dava para mais de trezentas pessoas. Coisas da fome.

Xeque-mate. Jogada de rainha.

Empurrei-a para cima do Fred. Sem mais nem menos. Nunca fui de menos. E os homens nunca resistem a uma gordinha. Fingi que os tinha apanhado em flagrante. Inventei um ar da treta, cheguei-me ao pé dele e enfiei-lhe um estalo pelas orelhas. Não fui uma mulher, fui uma gaja desnivelada. A gaja que lhe partiu a tromba em três segundos. Ouvi dizer que ficou de molho durante uns dias. Não sei, nunca mais o vi. E tudo no mesmo bar. As coisas que acontecem em segundos.

Estive com o Fred uma série de dias. Não sei quantos. Os suficientes. Quando se gosta perde-se a conta, e às vezes a ponta. E eu não gostava assim tanto dele. Não o vejo há mais de três anos. Deve estar fora de Portugal, como fazem todos os homens quando não querem assumir um compromisso com uma mulher. São todos iguais, só muda a cor das cuecas.

Chamem-me maluca, louca, o que quiserem. Mas foi a única forma que encontrei para me livrar daquela cabeça de vento. O mais importante foi ter conseguido mostrar a mim mesma que não estava assim tão interessada naquela banana descascada. Ser submissa não é o meu forte. Prefiro bife com batatas fritas.

E a gorda? Coitada. Essa nunca mais me falou. Deve estar numa pastelaria qualquer do Rossio a enfardar bolos de arroz às colheres. Deixa-a. É pobre, mas acomodada.

Odeio gente pobre!

Já os meus enterrados progenitores me diziam que sempre tive uma grande inclinação para o dinheiro. Não para o ganhar, mas para o gastar. Insolentes. Quer dizer; deixam-me uma tonelada de notas e não querem que a gaste! Vou guardá-la debaixo do colchão, querem ver! Mas digo-vos uma coisa, finíssimos leitores, se eu soubesse que cavalgar em dinheiro ia ser esta azáfama toda, tinha pedido para saltar cá para fora há muito mais tempo. Se tinha! Já lá vão mais de trinta anos.

Hoje em dia tenho o privilégio de não ter vizinhos do lado, e afins. Nem sei o que isso é. Mas, apesar de tudo consigo derrubar um prédio inteiro. Daqueles altos e cheios de borboto. Daqueles em que o cheiro da comida do vizinho do primeiro esquerdo chega ao vigésimo terceiro andar direito. O cheiro da sardinha assada. O cheiro da Mouraria. O cheiro da Alfama. O cheiro do fado. O cheiro de Lisboa e dos miradouros.

Choro. Lamento. Esperneio. Perco a conta às intimações.

Choro porque, apesar do dinheiro, estou completamente abandonada. Embora acompanhada pelas mágoas que fizeram de mim aquilo que sou hoje, sinto-me única. Triste e exclusiva. Aquilo que hoje sou. Uma mulher transformada em carne balburdiada, que se deixou vencer pela luxúria, pelo dinheiro, pela vontade de lastimar ainda mais. Tornei-me uma mulher que pensa que é gente só porque limpa o cú com uma nota de cinco euros. Dá para um café e um macinho de cigarros. Pouco mais.

Dizem que é coisa de rico.

Não sei o que sou nem o que sinto. Nem me recordo da última vez que senti. Às vezes pergunto ao dinheiro, mas ele não me responde, manda-me ir às compras. E eu vou. Uma vez disse-me para falar com a arrogância. Mandei-o à merda. Mas esta léria do dinheiro é deveras interessante. O magano chega, apodera-se de uma pessoa frágil e transforma-a no que bem entender. É lixado.

Estou velha com apenas trinta e dois anos.

Estou velha, não por fora, mas por dentro.

Dentro do meu peito ouve-se um piano ruidoso, demente, que toca à angústia e ao ressentimento.

Tenho tudo e ao mesmo tempo não tenho nada. A vida é mesmo assim; dá-nos agora para tirar no segundo a seguir.

Enquanto ainda cá andar, vou fazer conta de me entreter com o dinheiro em vez de idealizar sonhos. Enquanto ainda cá andar, vou fazer conta de me entreter com a bravura em vez de procurar o amor. Enquanto ainda cá andar, vou fazer conta de ir a Milão sempre que me apetecer, devorar o que for necessário para mostrar às paredes como é fácil fingir ser feliz. Enquanto ainda cá andar, vou fazer conta de me mostrar tal como sou, com todos os defeitos e qualidades. Uma balança equiparada.

Fecho os olhos. Verto umas quantas lágrimas. Limpo as gotas de suor com os dedos todos. Desnorteada como estas frases. Não sinto a diferença. Tudo o que me rodeia cheira a vazio. E não a Lisboa.

Estou velha com apenas trinta e dois anos.

Estou velha e cada vez mais armada em esperta e em porca, com a mania que sei escrever bem quando pormenorizo capítulos da minha vida. Pareço a Margarida Rebelo Pinto. Sei lá. Não há coincidências. E alma de pássaro é mesmo comigo. Enfim, gargalhar sem graça nenhuma. Dizem que os ricos sabem fingir como ninguém. Não sei. Nunca soube como é não fingir.

Qualquer dia mudo de casa. E talvez de vida, como fez o Fred há três anos quando se viu forçado a sair da minha asa enraivecida.

Procuro um caminho. Como toda a gente. Talvez seja isso que me faça parecer alguém. Como alguém. Com os dentes todos. Com a boca toda. Com os lábios sobressaídos.

A melhor casa é aquela que construímos no coração de alguém. E que alguém!

Por enquanto ainda sou uma sem-abrigo.

Rica, mas sou.

AndréMarquesLogoCrónica de André Marques
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