O Natal de 1914 – Francisco Duarte (Extra – Natal)

Ó tu que lês esta honesta rima da Flandres, ajoelhai-vos e dizei:

Que Deus traga o tempo em que todos dias

Sejam como o Dia de Natal.

Frederick Niven

A Primeira Guerra Mundial foi, decididamente, um dos eventos menos inteligentes da História. Em toda a verdade, desde meados do Século XIX que os grandes poderes europeus participavam num braço de ferro a nível continental e mundial, todos tentando emergir como dominantes contra todos os outros, independentemente das alianças.

Foi este estado das cosias que gerou situações caricatas, como a crise do mapa cor-de-rosa entre Portugal e o Reino Unido, apesar de ambos os países serem, essencialmente, aliados.

Com o virar do século as coisas ficaram mais complicadas. A unificação dos estados alemães mediante a mão de Otto von Bismark e a natural desconfiança de França (que já havia combatido contra a Prússia em 1870-71) e Reino Unido, levou à adoção de uma política de blocos. De um lado a Tríplice Aliança, da Alemanha, Áustria-Hungria e Itália, e do outro a Tríplice Entente, entre a França, o Reino Unido e a Rússia. Tudo este extremismo na abordagem às relações entre impérios foi acompanhado de um pesado crescimento do investimento nas forças armadas e na propaganda contra o opositor. Eventualmente, as coisas teriam de ficar feias.

O assassinato do arquiduque Franz Ferdinand da Áustria – no dia 18 de Junho de 1914, em Sarajevo – foi apenas um pretexto para o que se via como inevitável (afinal o que iriam fazer aqueles países com exércitos tão grandes ali parados?), e os dois blocos atiraram-se um ao outro.

Contrariamente ao que se esperava, a guerra não foi rápida. No final do ano os exércitos envolvidos já estavam literalmente enterrados em vastos campos de trincheiras batidas por artilharia, em que uma mera chuva transformava tudo em lama e afogava os homens em água e doenças. Era horrível e devastador para os sobreviventes, física e mentalmente.

O “milagre” de Natal

E foi neste cenário de pesadelo que, aos poucos, o Natal de 1914 se foi aproximando.

Não tenhamos ilusões, para o Universo e para a Natureza, inclusive a natureza implacável da guerra, o 25 de Dezembro é apenas mais um dia, mais uma reviravolta que a Terra dá sobre si mesma. Mas o mesmo não se aplica às pessoas. A mística cristã deu a este dia um significado muito específico, que traduz muito, e não apenas para os cristãos.

Assim sendo, para estes jovens que se viram atirados para um conflito tão devastador que rapidamente ganhou a alcunha de “guerra que acabaria com todas as guerras”, saber que iriam combater num dia tão especial era mais surreal que o seu dia-a-dia. Sobretudo para os britânicos e os alemães, uma vez que os combates se davam longe da terra dos primeiros e, vendo bem, o Rei britânico e o Kaiser alemão eram ambos netos da Rainha Victoria!

Havia ligações entre as populações de ambos os países e até foram os alemães quem começou o evento, dado que se sabe que começaram a cantar canções de Natal ao longo da noite de 24 para 25 de Dezembro. Entretanto já haviam começado a colocar velas em redor das trincheiras. Os britânicos, movidos pela cantoria, começaram também eles a cantar temas natalícios, tentando fazer-se ouvir sobre os seus adversários naquela guerra.

Eventualmente os homens começaram a gritar as boas-festas de um lado para o outro, o que culminou em vários grupos de soldados a encontrarem-se na Terra de Ninguém entre os campos de trincheiras para trocarem lembranças e até, em certas ocasiões, jogar futebol no meio da lama.

Evidentemente que a omnipresente artilharia deixou de disparar, entre tal mistura de tropas de ambos os lados, e muitos aproveitaram também para recolher os corpos de camaradas caídos nos dias anteriores.

Enfurecidos ao saber da notícia, os comandantes de ambos os lados ordenaram o fim dos encontros, sob ameaça de tribunal marcial. No geral estes continuaram até ao fim do dia, mas, aí, o espírito da guerra começava a ressurgir. Não obstante, em alguns locais os combates acabaram por cessar totalmente até ao fim do ano.

Foi um fenómeno curioso. Belgas, franceses e russos não apresentaram o mesmo tipo de simpatia para com os seus inimigos e, para eles, o Natal desse ano foi igual aos restantes dias da guerra.

Ainda assim, calcula-se que mais de 100.000 tropas de ambos os lados tenham posto as armas de lado, ainda que apenas por algumas horas, para celebrar um pouco este dia que tanto significado tinha para eles, com inimigos que nenhum ódio real lhes criavam.

Ainda que breve é mais uma história que nos diz que nos traz algo de agradável aos nossos corações, mesmo no profundo pesadelo do conflito armado.

Crónica de Francisco Duarte
O Antropólogo Curioso