Política da Treta

Harry Frankfurt, marcante filósofo americano contemporâneo, escreveu e publicou em 1986 um dos grandes tratados sobre questões filosóficas ao nível da comunicação, o ensaio ‘On Bullshit’.  Harry Frankurt defende que a treta, tradução por mim escolhida para ‘bullshit’, tanto pode ser verdadeira como falsa. Logo, aquele que debita tretas não tem preocupação pela busca da verdade, pretendendo apenas levar os receptores das tretas por si debitadas a agirem conforme a sua agenda pessoal. As tretas até podem ser verdadeiras, mas isso é irrelevante.

Frankfurt continua a sua argumentação afirmando que a treta do momento não tem necessariamente que ser consistente ou coerente com a treta de outra ocasião, sendo que o debitante da treta pode estar perfeitamente ciente de tudo isto. Um verdadeiro artista, digo eu. Há que saber dar mérito a algo que se tornou uma arte.

Um dos grandes problemas que Harry Frankfurt encontra neste fenómeno é o facto de a treta ser maior inimigo da verdade do que a própria mentira. Isto porque enquanto o mentiroso tem que conhecer a verdade dos factos para melhor os esconder, já o debitante da treta apenas se preocupa com os seus intereses ocultos, sendo-lhe completamente indiferente a verdade. Há portanto a partilha de um mesmo plano entre verdade e mentira, como adversários num mesmo jogo, mas já a treta está num plano superior.

A fenomenologia da treta, como eu carinhosamente gosto de a apelidar, embora tenha sido sofisticada e aprimorada, utilizando a imagem como um complemento cada vez mais importante, parece estar de boa saúde.

Todos nós continuamos a contribuir diariamente para o que parece ser um interminável reinado da treta. Seja no nosso trabalho ou nas redes sociais, com a  nossa família ou amigos, ou até mesmo no cumprimento mais simples. Conseguimos banalizar tudo aquilo que fazemos e dizemos, tornando-se quase impossível distinguir o verdadeiro significado das coisas. Desbravamos caminho com palavras ocas apenas para levar a àgua ao nosso moínho e desvalorizamos a verdade. Falamos do que não sabemos e repetimos clichés e lugares comuns que ouvimos anteriormente para fazermos boa figura e sermos melhor aceites. Mas como chegámos a este ponto? Bom, na minha opinião, o exemplo partiu de cima.

Desde há muito que a política passou a ser uma grande encenação. A política da treta que temos actualmente, tem a preocupação de dar a aparência certa aos seus representantes, de utilizar as palavras melhor acolhidas, de escolher a musica certa para uma entrada triunfal, mas não tem qualquer interesse pela verdade.

As mensagens políticas são cada vez mais inócuas, desprovidas de qualquer conteúdo e dando suficiente margem para que cada um entenda o que quiser, desde que vote no partido certo.

O sonho americano criado por Jonh F. Kennedy ainda hoje está por ser descoberto, mas valeu-lhe a chegada ao poder. Também Ronald Reagan, o Presidente que chegou do cinema, só podia ter sucesso. Mesmo sendo o príncipe do neo-conservadorismo. E até Barack Obama lhes seguiu as pisadas apresentando um discurso de mudança, sem no entanto fornecer grande enquadramento para as promessas que fez.

É este o cenário político actual, não sendo portanto de estranhar a ligeireza com que usamos da treta na nossa vida diária. Nem poderia ser de outra forma.

A treta persistirá enquanto continuarmos empurrar esta bola de neve, abusando da felicidade instantanea e ignorando as consequências que daí virão. Enquanto continuarmos neste estado de negação e auto-elogio, recusando-nos a aceitar a realidade, a treta continuará a triunfar. O individualismo que nos trouxe até aqui apenas ajudará a que este estado de coisas se mantenha, e para despertar desta dormência, que é consequência da falsa sensação de conforto que a treta nos dá, temos que quebrar este círculo vicioso em que nos encontramos.

Deixar de ser apenas um veículo da treta e ir mais além. Fazer mais um esforço e deixar de usar a treta para atingir os nossos objectivos. Até mesmo deixar de fingir ter ideia daquilo que se passa ao nosso redor. Ser o dínamo da mudança e apreciar o eventual sofrimento que a acompanha. Porque apesar de tudo, a treta explica muita coisa, mas no final ficamos na mesma.