Rita, anda ver o verão! – Cap.18

Ter entrado em casa quando faltavam umas horitas para o jantar, não implicava que Rita não estivesse já esfomeada.

Considerava-se amiga do vizinho militar a quem fez companhia a subir as escadas, porém, não estava imune ao efeito do cheiro do suor dele nas suas frágeis narinas. Entrou na casa de banho para lavar o rosto, depois descalçou-se e foi à cozinha a saltitar para não lhe arrefecerem os pés. Abriu o frigorífico e retirou de uma embalagem estanque grossas fatias de queijo e fiambre com que encheu uma carcaça de três que estava no saco à espera de que alguém provasse ser capaz de, em pouquíssimo tempo, fazer uma deliciosa sandes com o mínimo de esforço. Rita estava sozinha. Por um lado não gostou, mas por outro, pensou que seria agradável não haver ninguém ansioso que tornasse a sair, por causa da mania que achavam irritante de ser polémica na defesa dos seus pontos de vista.

Em casa onde reinava o silêncio, uma calmaria que a gata siamesa devia detestar porque preferia a companhia humana à dos outros animais que habitavam na mesma casa, um periquito e uma tartaruga de idade indefinida que se punha, por vezes, a cheirar, como se o mau cheiro do suor de alguém pudesse vir dela que ora estava parada ou a andar muito devagar. Era pequena e deliciava-se a degustar os camarõezinhos com casca que bem compensavam todo o tempo que ficava na proximidade do aquário à espera da chegada de alguém que se lembrasse de atirar uma dúzia deles lá para dentro. Já a ave, era de um azulão nas penas, que não ficava a dever em beleza ao estonteante céu numa tarde primaveril sem nuvens no horizonte.

A escolha do  nome da gata siamesa não fora consensual entre as irmãs. A bichana que inicialmente fora repudiada peça mãe com receio de que lhe rasgasse o sofá e pendurasse nos cortinados da sala. O marido que lha tinha levado, não gostou que o animal tivesse sido desprezado e atirado para a varanda, onde fazia muito calor no verão e frio no inverno, como o membro de uma família que tivesse arriscado e perdido toda a fortuna numa mesa de jogo e pediu-lhe que reconsiderasse. A escolha do nome prolongou-se e durante algum tempo ninguém sabia como chamar a gata, mas teve o mérito de abrir uma viva discussão acerca dos critérios que as pessoas adotam para pôr o nome aos seus animais de estimação.

Um pouco da maionese que Rita pôs na sandes, escorreu-lhe para os dedos, que ela chupou demoradamente, porque no final da frugal refeição não haveria uma sobremesa doce para que depois de tê-la devorado pudesse fazer igual.

O cheiro da embalagem aberta das carnes, deve ter atraído a atenção do animal, que farejou até ao local seguindo o rasto deixado pelas migalhas do pão que ela deixava cair ao comê-lo. Sempre era melhor, pensou, do que a ração enlatada que comia de manhã à noite, ao pequeno-almoço, refeição a meio da manhã, almoço, lanche, jantar e ceia, antes de se aninhar a dormir numa cesta atapetada com uma mantinha de lã.

Rita foi ao quarto e viu-se ao espelho. Parecia um corpo retirado dos escombros após um sismo.  Embora a evidência dos factos até comprovasse que estava feliz, o cabelo emaranhado a partir do casco em direção às pontas e a maquilhagem esborratada nos olhos, parecia querer dizer que estivera a chorar. À primeira, a gata afastou-se sem ter sido preciso a dona mandar, ciente de que pela primeira vez em muitos anos devia estar urgentemente a necessitar mais de mimos e colo do que ela.

Entretanto, vibrou e tocou o telemóvel de Rita, ao som de uma música que passava numa estação de rádio, que era popular entre os mais jovens por impopularizar junto dos pais,  os artistas que vinham substitui-los no lugar de alguém cujo exemplo eles achavam que deviam seguir. Rita mirou o visor e leu o nome que lá aparecia, com mais pena do rapaz pela forma como a irmã mais velha o tratava, do que até pelo nome com que os padrinhos o tinham brindado. Deodato. O futuro cunhado.

Era o namorado de Renata e tinha o nome esquisito de um desses comentadores de canal de televisão, recém-formados em Economia que julgam ter descoberto a fórmula infalível para resolver a crise do país à custa da crise na algibeira das pessoas mais carenciadas. Mal comparado, era assim como um médico que saberia tanto de finanças, como um engenheiro acerca da quantidade mínima de vitamina C de que um ser-humano precisa para viver. Contudo, se não fosse nem uma coisa nem outra, arriscava-se apenas a perder tempo enquanto estivesse com Renata, que estava mais interessada num futuro risonho construído ao lado de um homem que auferisse um bom ordenado, do que num que a fizesse simplesmente sorrir.

Pouco depois, alguém meteu a chave à porta e era a mãe que estava a chegar, com semblante de sexta-feira e a expressão do dever cumprido de mais uma semana de trabalho.

(Continua)