Sissi, ok – buling, ko

Abílio tem uma filha chamada Teresa. Que é casada e vive em França. Mãe de Kevin que trabalha no Dubai e vem casar a Braga com uma madeirense. Uma saga familiar que daria pano para mangas. Contudo, nem todas estas personagens cabem na história, nem me ocorreria citá-las, não fosse Abílio ter-se deslocado e adotado recentemente num canil municipal, un petit chien ao qual pomposamente decidiu chamar Sissi.

Petit chien, é como em França ou numa região do mundo aonde este idioma seja falado, chamam a um pequeno cachorro ou, no caso desta história, a um cachorrinho com poucos meses de vida. Sissi é pois um cachorrinho do sexo masculino, que não sendo de nenhuma raça dá-se por feliz por reunir características de todas. Isto é, gaba-se de ser veloz como um galgo, resistente como um S. Bernardo, leal como um Serra da Estrela e meigo como um labrador, mas acima de tudo é vaidoso como um caniche enfeitado de laços, daqueles que passam na rua e a quem não cansa ouvir de toda a gente dizer que é muito bonito.

De tão novo, era natural ainda não se comportar como um adulto, ou seja, vuxen em Sueco. Por isso, na rua largava de vez em quando a companhia de Abílio, e divertia-se latindo aos transeuntes distraídos, como se devessem reparar na sua presença, desviando a atenção de tudo em que na altura estivessem a pensar.

No dia em que completou oitenta anos, Abílio foi brindado com um presente especial, por parte de uma vizinha: um peixinho colorido que colocou a nadar num recipiente redondo de vidro, cheio de água como se fosse no ambiente seguro de uma piscina aonde podia viver tranquilo longe da ameaça dos predadores. Gostou tanto, que poucas semanas mais tarde outros animaizinhos de companhia se seguiram. Após o peixe de aquário, em Inglês, an aquarium fish, arranjou um cágado ou tortue em Francês. Começou por chamar-lhe aventureiro porque o passatempo favorito era esconder-se nos cantos mais recônditos da casa. E de seguida, arranjou um periquito, que colocou a voar na marquise, recordando, por ser amarelo, de que cor, sobretudo nos dias sombrios, ele gostaria de ver o sol brilhar lá fora.

Mas malgrado a companhia, Abílio sentia-se terrivelmente só. Viúvo sentia saudades da esposa, de conviver com os amigos que fora perdendo ao longo dos anos, e principalmente da filha. Amiúde, dava por si a recordá-la, protagonista de peripécias, a deambular pela casa plena de alegria. Sem esquecer que fora ideia dele chamar-lhe Sissi, por ser muito bonita e por causa dum filme que vira, em que no papel de uma imperatriz, representava a única mulher que vira de olhar tão expressivo como o seu.

Vendo-o triste, um dia a vizinha propôs-lhe dar a cada um dos animaizinhos que tinha, o nome de alguém que de algum modo lhe trouxesse uma recordação agradável e tivesse gostado de conhecer ao longo da vida, ou per tutta la vita, como dizem os italianos. A sugestão causou alguma estranheza, mas foi aceite e daí até pô-la em prática foi um curto passo. Resolveu chamar Toninho ao peixe, por ser o diminutivo de António, que era o nome do afilhado. Alberto ao pequeno cágado para recordar um amigo de longa data. E Batata ao periquito, em formato de alcunha igual à do genro, que tinha o nariz de formato arredondado. Ao petit chien, independentemente do género, resolveu chamar Sissi, lembrando a pessoa que era de todas aquela de que naturalmente mais gostava.

Era um nome bonito. Porém, no petit chien um nome feminino causava um certo embaraço, nomeadamente na presença dos outros cães, que o apelidavam de menina e, no auge da chacota, se riam do embaraço de ele achar que todos os dias inventavam piadas a seu respeito, jokes em Inglês. Pouco importava se com isso ele passava cabisbaixo. Em matilha, ladravam em uníssono o seu nome e não se coibiam de uivar com ar de gozo, remetendo-o ao silêncio, não tanto pela inércia de Abílio que os não repreendia em função de não entender a linguagem dos animais, como pelo facto de não se apercebendo da tristeza nada fazer no sentido de confortá-lo.

Mas tão fácil como entender o desconforto de Sissi, era compreender o motivo da distracção de Abílio. Se ao petit chien incomodava lidar com o buling por parte da comunidade canina, a Abílio apoquentava o problema da perda de equilíbrio, que obrigava ao esforço suplementar de caminhar apoiado na bengala, bastón em Espanhol, tendo o cuidado de não tropeçar nas patitas quando Sissi seguia ao seu lado. Devagar, sorridente cumprimentava as pessoas à medida que passava, e, quer estivessem perto ou longe, com todas lamentava não ter tempo livre que permitisse ficar o resto do dia à conversa.

Era de baixa estatura, mas entroncado e apesar do modo de vida sedentário, ainda guarnecido nos braços de massa muscular bastante para acharmos que, na juventude, teria tido força para facilmente pegar numa numa saca de batatas ou pommes de terre, em Francês. Agora aparentando cansaço, tinha a vista turva e o cabelo embranquecido, que nunca para parecer mais novo quisera pintar, como se, nem para disfarçar a idade, valesse a pena outro que não o tornado a nascer na cor original.

Nas imediações dum parque onde Sissi adorava fazer corridas, havia uma escola do Ensino Básico. Frequentavam-na dezenas de alunos que compunham as quatro turmas do primeiro ao quarto ano. Em todas elas, havia rapazes e raparigas de diferente condição económica, mas acima de tudo uma grande diversidade cultural, ou seja, crianças das mais variadas etnias, credos e religiões, oriundas de lugares tão díspares do planeta, como a India e o Brasil. Umas eram baixas, outras altas, umas magras, outras não, dando a sensação de as terem escolhido a dedo para num recinto de tão reduzida dimensão, estarem representados os quatro cantos do mundo, Welt para os alemães. A todas, sem exceção, Sissi gostava de latir, correndo com elas lado a lado, como se, mesmo não estando implicado um troféu, disputassem o título do mais veloz na corrida dos cem metros ou menos, dependendo da distância percorrida enquanto tinha fôlego para acompanhá-las.

Certo dia, andava Sissi a passear junto a um recinto desportivo, quando, sentado do lado de fora, deparou com um menino, ragazzo em Italiano, de ar triste. Admirou-se de vê-lo sozinho enquanto outros se divertiam, jogando futebol. E embora não ligasse ao jogo, parecia preocupado. Como se temesse virem culpá-lo de, desde que ali estava, já estar a perder a equipa que ao intervalo vencia por cinco a zero. Desanimado, sentia-se de mãos atadas, à espera de imporem-lhe um castigo que tinha o dever de cumprir, amparado nos joelhos que segurava para conter a tremedeira assim que começasse a chorar. Estava tão absorvido nos seus pensamentos, que nem deu pela aproximação do petit chien que permaneceu uns minutos a observá-lo, tapado por arbustos.

O tempo suficiente para assistir a uma cena lamentável. A chegada de três rapazes, ou seja boys em Inglês, que não perderam tempo a insultá-lo queixando-se de ter-se esquivado a deixá-los copiar a resolução dum exercício na aula.

Eram poucos, por isso um grupo pequeno, mas organizado, pois parecia terem-se disposto a mandar na frente o que assumia as funções de liderança. Era alto e tinha o cabelo sujo e desgrenhado. Usava roupas largas que disfarçavam uma frágil condição física, e devido a ter pernas longas dava passadas largas mas incertas, que obrigavam os outros a correr se quisessem acompanhá-lo. Por meio de insultos, humilharam-no ao ponto de tanto de o menino se sentir na pele do mais vil dos seres humanos, como Sissi na do cão mais impotente do planeta, por falta de coragem para avançar na direcção deles e expulsá-los dali para fora.

Lembrou-se de ir chamar Abílio, mas quando voltassem já teriam partido. Se pudesse, a galope como se fosse um cavalo ou horse em Inglês, voltando feroz como se fosse um tigre, para quando mal abrisse a enorme bocarra e rugisse, se arrependessem de, nesse dia, terem posto os pés fora de casa. Muito pelo contrário, esperou que eles saíssem e regressou a casa triste. De orelhas murchas ou, como dizem os espanhóis, orejas marchitas, mas decidido a gizar um plano que o haveria de fazer voltar no dia seguinte, àquela hora, ao mesmo lugar.

Mal dormiu nessa noite a pensar no sucedido, esperançado em que, de algum lado, nascesse a ideia dum plano que ajudasse a livrar o menino daqueles imbecis. Lembrando-se de como não gostava de ser gozado, dispôs-se a fazer com que parassem de chateá-lo, dando-lhes uma lição que não esqueceriam tão facilmente como as da sala de aulas. Enquanto permanecia acordado, foi dando conta de sons nocturnos que habitualmente não ouvia porque estava a dormir. Vindo de cima, escutou às primeiras horas da madrugada, o som dos sapatos ou zapatos em Espanhol, da vizinha que chegava tarde do trabalho. Entrando pela janela da cozinha mal fechada, o barulho do camião que fazia a recolha do lixo. A partir da casa ao lado, o gotejar duma torneira e vindo de baixo, o ressonar dum vizinho preguiçoso que nunca se levantava cedo para ir trabalhar. De manhã, achou que valera a pena. Apesar de tudo, a noite fora boa conselheira, e uma vez que soubera dar-lhe ouvidos, retirou dela o ensinamento que na prática iria ajudá-lo.

Achando que não valia a pena dormir, mal deu pela presença de Abílio zanzando pela casa, levantou-se e foi direitinho a ele, desejoso que lhe metesse a trela e levasse à rua para fazer chichi. Queria reconhecer in loco, isto é, no local, até que ponto era exequível cumprir o plano traçado. Acompanhou-o à cozinha ou kitchen em Inglês. Devorou uma tigela de ração, e encaminhou-se para a porta da rua, encostando-lhe o focinho como se farejasse a presença de alguém e quisesse juntar às características descritas de outras raças, a de exímio farejador que estava só ao alcance de um perdigueiro.

Mal Abílio o soltou, desatou a correr, em direcção ao local da véspera. Desviava-se das pessoas, ziguezagueando, mas desta vez sem lhes latir, causando alguma estranheza. Corria para se exercitar, a menos que para fazer chichi, agora sentisse vergonha na presença de estranhos, e andasse aflito à procura duma árvore ou tree em Inglês onde pudesse fazê-lo à vontade.

Quando chegou o banco estava às moscas e no recinto não se via vivalma. Ninguém jogava futebol, nem ninguém, de olhar triste, assistia ao jogo como se fosse uma seca. “Melhor”, pensou. Podia sem dar nas vistas estudar o local, embora o que lhe apetecesse fosse deitar-se sob a copa duma árvore a descansar. O dia anunciava-se ensolarado e a julgar pelo aviso de subida da temperatura, seria prudente procurar uma que desse sombra. Era prenúncio de um dia perfeito. Das árvores, um bando de passarinhos afoitos esperava afastar-se uma senhora que comia bolachas, para num voo rasante ir ao solo recolher as migalhas. Dos canteiros de flores, àquela hora a serem regados, um mar de pétalas resultava num convite às abelhas ou les abeilles em Francês, em tarefas de recolha do pólen necessário à feitura do mel. Aproveitando que tinha tempo livre, Sissi rondou o local, espreitou, mediu, e buscando o merecido descanso, deitou-se acabando por adormecer. Acordou ao chamamento de Abílio, resmungando de ter perdido demasiado tempo à sua procura.

Depois de almoço, sensivelmente à hora da véspera, Sissi e Abílio foram novamente à rua. Abílio recomendou-lhe que não se afastasse, mas o petit chien não fez muito caso e foi em busca do menino. Animava-o dessa vez a esperança de um encontro feliz. Sabendo que para ser bem-sucedido, necessitava da conjunção de três factores: obviamente a presença do menino, e o aparecimento de Brutus e dos três rapazes a quem queria dar uma valente lição.

Brutus era um cãozarrão, que habitava nas redondezas e primava por ter um ar assustador, sobretudo por ser grande e felpudo como um urso ou ours em Francês. No entanto, sob o ar de aparente ferocidade, escondia-se um cão bondoso, capaz, se posto à prova, de cometer atos de grande bravura. Só não reagia bem, quando a propósito do tamanho ouvia alguma piada que considerava de mau gosto. Ficava enfurecido, revelando um comportamento violento, capaz de revelar se quem lho provocara revelava velocidade suficiente para fugir a tempo de não ser apanhado.

Sissi foi o primeiro a chegar. Aconchegou-se atrás dum arbusto e esperou pacientemente. Depois veio o menino, que se sentou num banco do jardim e atrás dele vieram os três rapazes, talvez no engodo de roubar-lhe a lancheira e comer o que vinha lá dentro. Não tardaram a descobrir o que continha: um iogurte líquido, uma maçã fatiada e um bolo de arroz ou gâteau de rice em Francês. “Dá-nos o que tens e põe-te a andar!”, Dizia um deles. “Depressa e amanhã queremos que tragas três bolos!”, Dizia o outro. E vai daí diz o terceiro, “Não te esqueças, senão estás tramado!”.

Dito isto puseram-se a rir e, como se estivessem a espetar-lhe agulhas, davam-lhe beliscões nos braços, que, embora doessem, infelizmente em nada contribuíam para ajudá-lo a despertar do pesadelo. Sorrateiramente, Sissi deslizou para debaixo do banco e ficou à espera que pudesse surgir Brutus. Só à custa duma força invisível, porventura o medo, não se atirou a eles a ladrar. A tempo de perceber que soltar a raiva poria tudo a perder. Remeteu-se ao silêncio e no cumprimento dessa regra, resistiu à tentação de pular quando vindo do lado da escola viu surgir Brutus. Baseado em que podia não dar sorte festejar antes de tempo, esperou pelo momento certo para agir. Virou-se para ele e latiu em tom de cantilena: “Brutus, brutinho, cachorrinho pequenino. Brutus, brutinho, cachorrinho pequenino”.

Achando piada, os rapazes começaram a rir, mas quase prontamente pararam, vendo Brutus irromper na direcção deles obrigando-os a fugir. Ao mesmo tempo que gritavam por socorro, corriam desesperados procurando abrigo no meio das pessoas, que se desviavam soltando gargalhadas, vendo Sissi fugir na frente deles, não para guiá-los, mas para atrair Brutus, de maneira a eles acreditarem que o cãozarrão corria no seu encalço em retaliação ao facto de terem maltratado o colega.

A partir daqui mas apto a encarar os seus próprios problemas, Sissi só se deu por satisfeito quando, prestes a serem apanhados, antes de passarem o portão da escola, os ouviu prometerem não tornar a fazê-lo e, dali em diante, até proteger o menino de quem se atrevesse a importuná-lo. “Finalmente!”, Pensou Sissi já farto de correr podendo enfiar-se numa passagem estreita para lá da qual mais ninguém o viu. “Ainda bem!”. É que da próxima vez talvez não tivesse tanta sorte e demorasse mais dias a delinear um plano. O que seria terrível, pois nos seus planos, o que não constava certamente era passar outra noite acordado, sobretudo se no dia seguinte não se pudesse deitar depois de almoço a dormir uma sesta.

E daqui se conclui que ninguém gosta de ser vítima de nenhuma forma de buling. Ao menino não foi dado nome, porque nesta história representa todas as crianças. Vamos ser amigos e unir-nos contra todas as formas de violência.

FIM