Tauil caça Bakul

Tauil olhou para o braço ferido e a despeito do que ouvira das dentadas de dragão achou que ia ficar bom. Era forte, mas sentia-se fraco e impotente ante o esforço despendido face a uma criatura cuja envergadura era a do pátio de uma fortificação à medida do telheiro com que era necessário cobri-lo para torná-lo num lugar seguro em caso de ataque.

No perímetro da montanha onde habitava o dragão, passava um rio que desaguava num lago em cuja superfície esbranquiçada havia líquenes de aspeto desvanecido como nuvens sopradas por um vento forte e, mais abaixo, um bosque sinuoso a caminho de uma aldeia onde não morava camponês ou soldado com coragem suficiente para se embrenhar nele durante a noite. O próprio Tauil já se lá perdera uma vez e só graças à orientação do sol conseguiu reencontrar o caminho de casa.

Por opção, Tauil vivia numa encosta sobranceira à aldeia, com vista privilegiada para o fundo da rua da qual divergiam olhares vigilantes que controlavam os passos dos estranhos que lá entravam. Anexo ao estábulo vivia um ferrador que numa espécie de acerto de contas, relatava ao alcaide tudo o que via. Tauil vivia numa cabana coberta de palha ampla, que ele próprio construíra pensando que em breve casaria, a família aumentaria e, com algum grau de conforto, teria de acomodar toda a gente sem ter de empurrar para o lado, quando passassem ou quisesse fazer a cama para dormir, os elmos e demais artefactos militares que possuía.

À primeira vista era louro, mas sob o sol forte o cabelo tornava-se ruivo e no rosto despontavam borbulhas, primeiros sinais da transformação que se operava nas noites de lua nova. Há menos de vinte e quatro horas em menos de um minuto, sentiu ganhar forma o espírito maligno que se lhe apoderava dos membros.

Primeiro nas pernas: um formigueiro antecedendo a sensação que sucedia a um desmaio. Sentia-se desfalecer e depois no propósito de ganharem força sentia que elas endureciam sólidas como as paredes de uma casa erigida em pedra, contra a qual era inútil bater nem que fossem pedras disparadas por uma catapulta porque nada podia derrubá-las.

Depois era a vez dos braços que, já per si grossos, duplicavam de volume para o triplo da massa muscular que tem quem contrariamente a si não estava acostumado a pegar em pesos. Não podia mirar-se ao espelho, mas sentia-se feio e dono de um corpo disforme, de cintura fina mas com membros que passado o efeito da transformação pareciam amputados, tal a mudança que saltava à vista de qualquer um. Adquiria as características de um atleta de alta competição, numa altura em que se desconhecia a prática do desporto e ninguém competia a não ser pela sobrevivência num ambiente hostil que ainda por cima era dominado por um dragão chamado Bakul, o mesmo que ele naquela noite meteu na cabeça que teria de matar, desferindo golpes de lança certeiros no peito e no pescoço.

Tauil não media mais de um metro e setenta mas a força de mil homens conferia confiança para achar que podia chegar mais depressa, ir mais longe e voar mais alto do que quem quer que fosse. O primeiro passo para ser mais bem-sucedido que um forasteiro de quem só se lembravam que partiu com igual propósito, mas nunca mais ninguém tornou a ver naquelas bandas.

De noite, quando teve a certeza de que a rua não era vigiada, saiu de casa e guiado pelo instinto de atiçar a fera dirigiu-se a oeste pelo caminho que o levaria a atravessar o bosque, rumo à montanha onde era à hora a que o dragão dormia, que os predadores aproveitavam para caçar sem o risco de virarem presas. Deslocava-se a passo, de vestes negras como se estivesse de luto pelo falecimento precoce do único cavalo de que dependia para não andar a pé. Numa mão levava uma lança de ponta afiada e na outra segurava um escudo de ferro, afiado para servir de arma de arremesso no caso de se ver na outra de mãos a abanar.

A noite tinha uma luz opaca e Tauil considerou de bom augúrio o piar de um mocho, como se nalgum lado estivesse escrito que a não ser assim ele não teria tido coragem de sair de casa. No entanto, parou à entrada do bosque. Vinha dele o cheiro nauseabundo de árvores cobertas de folhas mortas, mas reiniciou a marcha e atravessou-o surpreendentemente depressa para quem acrescentando ao facto de pensar que era assombrado, ainda juntar o receio de que de noite pudesse conduzir a um precipício do fundo do qual precisaria do apoio da população inteira da aldeia para sair.

Por fim, avistou a imponente montanha que servia de morada do dragão e ofegante refletiu sobre as consequências do ato que estava prestes a cometer, libertando a aldeia do jugo de uma fera que mantinha aprisionados a ferro e fogo, os habitantes dentro das próprias casas. Ajustou a bainha da espada à cintura e empreendeu a subida da montanha, primeiro parando amiúde para recuperar o fôlego e finalmente de uma assentada até alcançar o topo. Sem dificuldade, graças ao luar, encontrou a entrada da única caverna à vista com uma abertura suficientemente grande para caber um animal de grande porte e em cujas profundezas ele repousava de ter na véspera lavrado de fogo, em voos circulares que levantavam mais vento do que um tornado, o campo de trigo que servia de principal fonte de sustento à economia local.

Tauil mal o observou mas apontou a lança e não falhou o alvo. Cravou-lha com força no peito e só lamentou ter reagido tão lentamente à tentativa do bicho se soltar, que não evitou uma dentada no braço que por um triz não lho decepou. Por último o dragão caiu e já morto é que Tauil percebeu que dele as pessoas não tornariam a falar com receio das tragédias que pudesse voltar a causar. Agora esvaía-se em sangue deitado numa laje coberta de musgo como se fosse uma toalha de linho que a embelezasse para dar-lhe conforto e à medida que as horas passavam e o aproximar da aurora anunciava que as pernas e braços voltariam ao estado normal, dotando-o de menos força, cada vez mais se convencia de que talvez ele próprio não sobrevivesse, mas no futuro quando evocassem o dia histórico da matança do dragão, já não seria de um cavaleiro anónimo que falariam porque sempre seria o seu nome que viria à baila.

 

FIM