Tutela partilhada do ponto de vista da criança – Lúcia Reixa Silva

Hoje vou escrever acerca da Tutela partilhada, não do ponto de vista legal, que não me compete avaliar, nem da perspectiva parental, mas antes do ponto de vista que me é dado a conhecer ao longo de alguns anos por algumas das crianças nesta situação…

Ao longo dos últimos treze anos, de forma mais ou menos contínua, tenho trabalhado com crianças e jovens em contextos vários, e fui percebendo aqui e ali, as amarguras vivenciadas pelas crianças que passam pela separação dos seus progenitores, sendo que me apercebo que na grande maioria dos casos, a criança sofre sempre com esta situação. Na verdade por muito bem feita que “a coisa” seja feita, amizade entre o casal separado, partilha de deveres e direitos, apoio mútuo e apoio à criança, etc, etc, etc, ainda assim não conheci filho ou filha que não sofra com a mudança de uma situação em que os seus pais/mães estão juntos, casados, e passam a estar separados.

Claro está que quanto melhor os progenitores fizerem o processo de separação, maior a probabilidade de que a criança ultrapasse esta etapa de transformação da sua vida e ambiente familiar com sucesso.

Se o processo é complexo, muito diferenciado de caso para caso, diferente consoante o casal, a própria criança e a situação familiar em si mesma, o fim último desta escolha dos adultos casados ou a viver juntos, é passarem a viver separados ou divorciados, e, consequentemente existir esta diferença na vida da criança em que deixará de viver com os dois progenitores numa mesma casa, partilhando uma vida com os seus pais/mães “debaixo do mesmo tecto”.

Anteriormente, há cerca de trinta e vinte anos atrás, o mais comum nesta situação era a criança ficar entregue aos cuidados de uma só pessoa ou núcleo familiar de pertença, quase sempre a mãe, em algumas situações o pai, e noutras os avós, indo a criança depender do bom senso dos adultos para que as visitas de fim de semana, férias e festividades como Natal e Passagem do Ano, não se tornassem um verdadeiro “sufoco”, em que a criança ia com a sua “malinha feita” no fim de semana marcado, apesar de nesse fim de semana ter uma festa importante na zona onde mora a que iria ter de faltar, ou porque precisava de estudar e preferia estar em sua casa, mas não podia, porque era o fim de semana x, etc…

Quando havia bom senso dos adultos e respeito pela vontade e bem estar supremo da criança, estes fins de semana e festividades eram mais fáceis, onde a criança podia escolher, de certa forma, livremente, se ia ou se ficava para a outra semana, se passava o fim de semana, ou se ia só passar o dia e dormia em casa, se ia só almoçar ou jantar ou passear, mas depois regressava a casa, se passava a noite de Natal com o núcelo familiar que preferia, e ia almoçar ou jantar no dia seguinte com o outro progenitor e familiares “desse lado”, etc…

Nestes casos, a responsabilidade da escolha podia no entanto pesar à criança, gerar alguma culpabilidade até, mas de certa forma, era uma responsabilidade que permitia alguma liberdade e a criança bem apoiada e com progenitores conscientes, podia ser ajudada nestas escolhas e a ultrapassar a “angústia da escolha”…

Nos casos em que o bom senso não existia e a ordem era do “tribunal”, tínhamos a criança muitas vezes “arrastada” para aquelas férias que detestava, a noite de Natal que não queria, o fim de semana quinzenal em que a criança ia triste com a sua “malinhas de viagem” para o outro progenitor …esta imagem então não me deixa de fazer pensar em alguns colegas meus, que partilhavam esta “angústia” da ida naquele fim de semana, apesar de gostarem desse progenitor e de serem bem tratados.

Para ultrapassar estas e outras questões, há cerca de quinze anos atrás, sensivelmente, e até ao momento, começou então a ser uma opção legal comum, a tutela partilhada. Não só os progenitores passaram a ter igual responsabilidade pelo filho, como partilham mesmo e de facto esta tutela na sua plenitude, estando ou aos “quinze dias” ou “à semana” a viver com o filho, para depois estarem sem o filho na semana ou no par de semanas seguintes.

A criança deixou pois, numa grande parte dos casos, de sentir que vivia com um só progenitor, e visitava o outro, e aliás, a lei surge precisamente porque os pais/mães devem ter direitos e deveres iguais, coisa que é assegurada por esta medida, para passar a viver com os dois…só que a meio tempo…

O problema numa grande variedade de casos é que a criança, principal pessoa que devia ser protegida, nem sempre fica muito satisfeita com esta tutela partilhada por decisão de tribunal…e muitas vezes quase tem de viver uma “vida dupla” imposta por esta realidade, o que não é de todo bom, nem razoável…

Imagine cada um de nós que vivia em duas casas, tinha dois conjuntos de escova de dentes e pasta, dois conjuntos de roupa, uns numa casa e outros noutra, dois quartos a que deve chamar seus, duas moradas de residência permanente, e horários e rotinas familiares que vão alternando…se associar a esta situação irmãos permanentes numa ou nas duas casas, que não alternam de residência, a confusão está totalmente instalada na cabeça e nos afectos desta criança “partilhada”…

Desculpem, a lei é boa para servir os adultos que se separam?…Parece-me que pode ou não ser, dependendo dos casos. Claro está…Mas e a criança?…

Não nos esqueçamos da justiça de Salomão que era igualada pela sua sabedoria: (…) E quando as duas mulheres chegaram até ao Rei Salomão, alegando ambas que a criança viva era sua e o nado morto era da outra, Salomão na sua imensa sabedoria e sem perder de vista a noção de justiça, propôs que a criança viva fosse pois “partilhada” literalmente, cortando-a ao meio e dando cada parte às mulheres…claro que a mulher que mentia e não era mãe da criança viva, aceitou…e a outra preferiu que tal não fosse feito, ainda que a criança que era sua, fosse entregue à outra mulher, pois a sua vida estava em primeiro lugar. Salomão reconheceu assim a verdadeira mãe, e determinou que a criança viva fosse entregue à sua verdadeira mãe, que preferia abdicar do seu direito à maternidade do que à vida do seu filho(…)

Claro que este exemplo retrata outra situação…mas numa livre analogia, o importante e o que deve prevalecer é a vida da criança, sempre. No presente caso de que vos falo aqui, não se trata da vida literalmente, porque não é o que está em causa,  mas é a qualidade de vida da criança e a sua vida afectiva que está em causa.

Bem sei que o ideal subjacente à “tutela parental partilhada” é bom…mas “de boas intenções está o inferno cheio…” já diz o provérbio popular…

Das crianças com quem tenho lidado profissionalmente, a grande maioria adapta-se a tudo, claro…até a coisas menos boas infelizmente…mas na verdade, e quando falam profundamente sobre estas coisas, há uma imposição que alimenta uma enorme confusão na sua vida e rotina própria…

É natural que a criança precise de sentir que vive num espaço, e que visita outro espaço, que também é seu, sempre que quiser…o que não é natural é que a criança tenha de viver “partida em duas vidas”…que tenha de andar com livros e cadernos de casa para casa, as suas coisas pessoais, os seus brinquedos, os seus amigos, até as suas actividades, que muitas vezes exigem que a criança só frequente quando está a “viver” num dos locais…obrigar a criança a uma vida nómada, na verdade, não parece ser uma boa solução…

Enfim, podemos sempre sorrir ingenuamente e dizer que é maravilhosos ter duas casas, dois núcleos, tudo “dois”, tudo a dobrar…mas na verdade, daquilo que me vou apercebendo, a justiça para o casal que se separa, não é em rigor muito justa com a criança quando a decisão é a tutela parental partilhada…

A maioria das crianças sente-se sempre em casa alheia…por muito que lhe digam o contrário…ou acabam por optar por uma, fazendo da outra uma casa de “férias” permanente…Sente também um medo imenso de ferir algum dos progenitores se disser que na verdade preferia viver sempre com o outro e ir só de visita…tem medo de perder um, ou ambos…infelizmente alguns progenitores sentem-se de facto rejeitados se houver esta escolha e acabam por não permitir à criança esta escolha, livre e sem medo, percebendo que não é uma rejeição pessoal e que é o bem estar da criança que tem de estar em primeiro lugar…

Em termos escolares esta vida “partilhada” é um absurdo real, fazendo com que a criança esteja muito distante da escola ou do colégio quando está numa das casas por ex., tenha atrasos frequentes, se esqueça nalguns casos de material, enfim, como disse antes, uma confusão…

A tutela partilhada por pais que não se entendem bem, é ainda pior claro está…em termos escolares obriga muitas vezes a reuniões entre professores e pais a duplicar, porque separadas, decisões para a vida da criança suspensas porque não há acordo, e portanto lá fica o psicólogo pendente para a criança, as explicações a determinada disciplina à espera de decisão conjunta, a ida ao passeio que vem assinada numa semana, mas não é autorizada na outra, a festa que é divulgada numa casa, e “coincide” com a semana na outra casa, etc…

Só quem não queira ver a realidade, ou a veja estritamente do ponto de vista do progenitor que quer ter direitos iguais, é que não percebe que a tutela partilhada também não parece ser a melhor solução quando se operacionaliza desta forma….Não é de todo o melhor para a criança, perdoem-me os que comigo discordam…

Não sei o que é melhor nesta situação…não existem fórmulas mágicas de sucesso seguramente…cada caso tem de ser visto isoladamente, penso eu…

Mas uma coisa é certa, que a grande maioria das crianças com quem trabalho preferia estar a viver apenas com um dos progenitores, e visitar o outro quando quisesse e pudesse ser…não tenho qualquer dúvida…Se é justo para os progenitores não sei…mas para a criança esta tutela partilhada salvo raras excepções, parece ser absolutamente dispensável, e com consequências menos positivas para a criança…

Se perguntarem, no entanto, à criança nesta situação, dificilmente ela responderá a verdade em muitos casos…o medo de ferir um ou ambos os progenitores e de os perder é demasiado intenso e oprime a liberdade de expressão da criança, a sua liberdade de escolha…

Muitas vezes são assim habituadas desde tenra idade, e ainda têm maior receio, mais tarde, de fazer uma escolha, se tal lhes fosse concedido…no entanto, por vezes, manifestam as suas escolhas na escola, no grupo de pares, com os professores, por exemplo…e isto dá uma clara imagem do seu desejo real em muitos casos…

Hoje a minha reflexão passou por aqui…não sei a “receita”…mas no que diz respeito às crianças, talvez o mal seja mesmo tentar generalizar – a lei – o que não é generalizável…cada núcleo familiar é único, com características muito próprias e que devem merecer atenção individualizada… Tudo se resolve, no entanto, se houver bom senso e se considerarmos sempre o supremo interesse da criança do ponto de vista do afecto e da estabilidade emocional, não apenas da perspectiva dos adultos, mas ouvindo e respeitando aspectos mais profundos da própria criança…na verdade dando-lhe voz…e escutando activamente a voz que lhe é dada, sem censura, “apenas” com empatia e compreensão.

Comecemos também nós, em todas as circunstâncias, a ouvir de verdade, as “nossas crianças”…dar-lhes voz…respeitando aquilo que sentem e o que dizem, se lhes dermos essa oportunidade…

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Crónica de Lúcia Reixa Silva
De Alpha a Omega