Zazá

Enquadrado no rosto dela, descobri o retrato robô da mulher que escolhi para amar.

Surgiu-me do nada, como quem, sem nada pedir em troca, nos salta ao caminho aproveitando uma janela de oportunidade aberta pela pandemia. Na verdade, não a via há demasiado tempo. Há dias, semanas, meses suficientes para achar que tinha emigrado para lugar seguro ou então que, de máscara idêntica à minha, passava por mim todos os dias na rua e, lamentavelmente, eu só voltaria a reconhecê-la quando, usá-la, deixasse de ser obrigatório e punido com coima.

Foi preciso hoje quase termos tropeçado um no outro, para, guiado pela voz que normalmente confluía num sorriso, tê-la identificado como faria num aglomerado de pessoas antes da confinamento. Foi preciso quase termos embatido de forma involuntária, para afluir à memória o dia em que a vi pela primeira vez, tão bonita de voz tão suave como quando me aparecia em sonhos a prometer que havíamos de ficar juntos.

Gosto tanto que não me importaria de ouvir falar dela de segunda a sexta-feira, como se a juntar ao propósito de sair diariamente de casa para ir trabalhar lá no escritório, houvesse o de descobri-la e era por isso que não despregava o olhar de quem passava na esperança de encontrá-la.

Incrustada de missangas, admirava a pele de tom castanho, mas era na observância das regras de higiene oral que, de ouvido atento ao que dizia, apreciava o sorriso capaz de fazer-me materializar em palavras o encanto de tê-la descoberto, como à sensação de bem-estar em que o nosso corpo repousa depois de fazermos amor. E com ela, sabe ao que tem de bom rapar o caroço de uma manga, mas sem ficarmos com fios enredados nos dentes que retiravam a vontade de lá ir outra vez. Amá-la sabe ao que sabe a fruta madura fora da estação, com a probabilidade de ser tão doce que passaria o mel a saber-me a azedo.

Não me recordo de alguém de quem tenha gostado, me ter dado tão intensamente o mote para escrever um poema, com versos a preceito e rimas em que sobressaísse a minha vontade de fazê-los inesquecíveis como as quadras de Camões. Versos que transformaria em soneto, para declamar-lhe ao deitar, quando fôssemos para a cama e, antevendo o que lá vinha, diante dos meus olhos se começasse a despir.

FIM