Trepa o sol pela janela aberta de gente aprumada para um outro dia de ordenado reduzido ou reforma suprimida e de gastos rotineiros mas necessários – precisamos de comer, de beber, de ir ao médico, pagar as contas (as dívidas!), a casa e o carro; tratar dos filhos, dos pais, de nós. Queremos conforto. Merecemos conforto.
Ligamos a televisão para um rol jornalístico de ofensas, assassinatos, burlas, assaltos. Repito – queremos conforto. Nem que seja apenas o conforto do calor da esperança de “um dia” termos o que queremos, lutando, chorando mas vingando esse desejo. Os protagonistas das histórias acima cruzaram-se com o desespero, pelos fragmentos de si mesmos, quebrados na angústia encoberta pelas rugas do riso, pelos anos nos dias.
Foi há quarenta e um anos que o nosso país assistiu ao maior aplauso popular, onde tu e eu nos juntamos como iguais, em manifesto pelos mesmos direitos.
Fomos ao Terreiro do Paço e exigimos o direito ao voto, à liberdade de expressão e à manifestação e, com ela, o fim da P.I.D.E.; o direito à educação e à infância, a libertação dos injustamente presos políticos e o regresso dos forçados a fugir do país para escapar à guerra, à prisão e à tortura – ordenámos democracia!
Com a resistência do regime praticamente nula, o Movimento das Forças Armadas devolveu-nos o poder que alegremente repartimos pelo país. Ouvimos a “Grândola Vila Morena”, distribuímos uns quantos cravos pelos soldados, que os colocaram nos canos das espingardas e passamos a reconhecer esta data como o “Dia da Liberdade”. A guerra Colonial termina e, com ela, o serviço militar obrigatório. Nasceram novos países e passamos a ter eleições livres, com divulgações de diferentes partidos políticos. Ganhámos algum poder de compra e usámo-lo nas obras escritas e gravadas agora permitidas.
No entanto e entretanto, foi-nos prometido uma “casa digna para todos” mas ainda somos muitos os que vivem em espaços quase que, senão mesmo, inabitáveis; a saúde e a educação “gratuitas” complicam-se pelas redes burocráticas e no avaro governamental; o desemprego é estatisticamente mau mas, e na verdade, é bem pior que relatado e de arraste com ele, as desigualdades parecem infinitas; a fome ressurge por entre os preços inflacionados e pela discreta extinção dos direitos. Merecemos conforto.
Enfiamos as mãos pelas entranhas da sociedade na procura de oportunidades, muitos escravizados pelas horas de trabalho à troca de trocos, por períodos curtos e pontuais. E depois da queda, o erguer, sempre o levantar de cada e toda a vez! – como pode, assim, um sujeito suster a faceta socialmente aprendida e aceite sem jamais a estalar, seja através de uma buzinadela insultuosa ou até ao mais extremo e visto pelas oito da noite, pelos canais nacionais? Queremos conforto.
Aparentemente e com o sofrer no tempo, fomos também esquecendo a razão pela qual lutamos (e ganhámos!) naquele histórico dia.
Mas, desde então, um cravo nunca foi apenas mais uma flor.
“Quis saber quem sou | O que faço aqui | Quem me abandonou | De quem me esqueci | Perguntei por nós | Mas o mar | Não me traz | Tua Voz.”
Paulo de Carvalho, E Depois do Adeus
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