A Livreira

” Como já foi dito: O amor e a tosse não podem ser disfarçados. Nem mesmo uma pequena tosse. Nem mesmo um pequeno amor. “

Anne Sexton

Há algo de transcendente quando entramos na livraria, o aroma dos livros novos, as páginas levemente amareladas dos livros antigos, o pó disfarçado das prateleiras, as citações colocadas estrategicamente nas paredes laterais, imagens de grandes autores nacionais rodeiam as mesas e sofás onde os clientes comodamente se sentam a desfolhar um belo livro. Na montra principal figuram os dez livros mais vendidos da semana, no pequeno mostruário ao lado da entrada são vendidos, a um preço especial, porta-chaves com o rosto de Fernando Pessoa e ímanes com estrofes de poemas de Florbela Espanca.

Nesta peculiar livraria, situada num edifício antigo na cidade do Porto, onde o comércio para o turismo rapidamente prolifera, trabalha há relativamente pouco tempo a Livreira, adoptou este apelido no segundo dia de trabalho, quando a vizinha que trabalha no café ao lado entrou na livraria e, avistando-a de óculos no nariz, a deambular pela loja de livro na mão, chamou-a de Livreira e apresentou-se a ela mesmo como A Vizinha que não lê, em contrapartida prepara um excelente café, que a Livreira toma religiosamente todos os dias pelas dez da manhã.

Assim como o café que bebe sempre à mesma hora, a Livreira tem rotinas que não dispensa, desde a corrida matinal a adormecer fielmente antes das 23 horas, preserva a sua individualidade e a sua independência. Não bebe, não fuma, não tem vícios nem hábitos menos saudáveis. Para alguns seria uma vida monótona, para ela é uma vida prazerosa, ser erudita talvez lhe causasse alguns dissabores no passado, mas a passagem tenebrosa do tempo refinou-a e ela tornou-se uma mulher interessante. Não tem namorado nem tenciona ter num futuro próximo, há cerca de dois anos que não tem um relacionamento amoroso, o último namorado que teve foi despachado após uma calorosa discussão sobre a intensidade dela e a falta de dedicação dele. Desapego, sim, desapego, é a palavra que a define neste momento, desapego pelas pessoas, pelos homens, desapego pelas horas e pelo tempo, desapego por tudo o que envolva emoções e sentimentos. Ela, os livros e uma boa música jazz.

A vida, oh! A vida, tem uma forma muito singular de nos conduzir até ao caminho certo, citando José Saramago “Sempre chegamos ao sitio aonde nos esperam”. Eram 18 horas e 45 minutos, faltavam 15 minutos para a livraria fechar, quarta feira ténue de Inverno, Miguel entrou apressado, abriu a porta com alguma aspereza e deu pequenos passos em direcção à Livreira que, naquele momento, organizava as obras de António Lobo Antunes. Boa tarde, precisava de uma ajuda, se fazia o favor. A Livreira desviou os olhos dos livros e cumprimentou o cliente, o sorriso, ai! Aquele sorriso tremendamente sedutor, ela deteve-se por instantes, sorriu amavelmente. Sim, claro, em que posso ajudar? Quero oferecer um livro especial a uma mulher especial…

Continua

Nota: A história “A Livreira” tem como coautor Miguel Martins.